domingo, 22 de fevereiro de 2009

Muitos ângulos para um só caso

A cobertura do processo Freeport continua a suscitar reacções de leitores, sob diferentes perspectivas

Como assistente do processo, o compromisso principal do jornalista do PÚBLICO deixa de ser com os leitores para passar a ser com a justiça


O provedor regressa à cobertura do PÚBLICO ao caso Freeport, envolvendo a figura do actual primeiro-ministro numa controversa concessão de construção de um outlet na Zona de Protecção Especial (ZPE) do Estuário do Tejo, em Alcochete, a três dias das eleições legislativas de 2002, quando José Sócrates sobraçava a pasta do Ambiente.

O leitor H.C. Mota detectou contradições na notícia “Alteração da ZPE esteve na gaveta um ano e serviu para o Freeport”, publicada em manchete na edição de 28 de Janeiro, cujo subtítulo rezava: “Projecto de resolução do Conselho de Ministros nunca foi aprovado”. Na sua reclamação, H.C. Mota chamava a atenção para o que dizia o texto, da autoria do jornalista José António Cerejo, nas págs. 2/3: “No mesmo dia 1, o presidente do ICN [Instituto de Conservação da Natureza] dá o seu ‘concordo’ e, também nesse dia, Pedro Silva Pereira aprova a proposta de decreto e remete-a ao gabinete de Sócrates ‘tendo em vista o agendamento para reunião do Conselho de Ministros’. Treze dias depois, (...) o decreto é aprovado”.

Da leitura da notícia, verifica-se porém que se trata de dois projectos diferentes. Aquele que nunca terá ido a Conselho de Ministros dizia respeito à alteração do perímetro urbano de Alcochete por forma a abranger o espaço do futuro Freeport, enquanto o que foi aprovado alterava, com idênticos efeitos, a área da ZPE. Minudências cujo razão política, se existiu, não é descortinada na notícia e de cuja colocação em subtítulo de manchete se acaba por perder o sentido... De qualquer modo, não propriamente uma incorrecção factual.

Outra incongruência, segundo H.C. Mota, é que “a notícia não confirma o título”, ou seja, o texto não provava a intenção de a alteração da ZPE servir para a construção do Freeport. Mencionava-se com efeito um documento do ICN explicando que um dos objectivos do diploma em questão era "permitir uma 'intervenção urbanística requalificadora da área' das fábricas desactivadas, incluindo a Firestone [local do futuro Freeport]", mas, como a referência a esta unidade industrial já não surgia entre aspas, ficava-se sem se saber se o papel indicava explicitamente essa área ou se se tratava apenas uma interpretação do jornalista.

Explicou José António Cerejo ao provedor: “Sou eu que digo que o documento diz, portanto não deduzo, que se trata de fábricas desactivadas, incluindo a Firestone. (...) Os documentos, até por razões técnicas, entre outras de espaços e de concordâncias gramaticais, não podem ser transcritos na íntegra. (...) O que [nele] está escrito (...) é que se propõe a revisão da ZPE ‘no sentido de...’, elencando-se depois seis objectivos, um dos quais é ‘recuperar áreas com localizações de unidades industriais pré-existentes [...], com medidas de compensação ambiental e uma intervenção urbanística requalificadora da área’ (...). Na página anterior fala-se de algumas questões ‘que urgem ser abordadas para a redefinição’ dos limites da ZPE, sendo que uma delas é a das unidades industriais cuja exclusão da ZPE é proposta. E logo a abrir diz-se que, ‘adjacentes à EN 119, existem três unidades fabris – [entre elas] a Firestone, actualmente desactivada [...] – que se encontam incluídas nesta ZPE’. É a estas e não a quaisquer outras unidades industriais, até porque não havia outras dentro da ZPE, que se refere a ‘análise final’ do documento sobre o qual Pedro Silva Pereira mandou seguir para o Conselho de Ministros o projecto de decreto-lei a ele anexo”.

Assunto esclarecido, portanto, embora, na perspectiva do provedor, e a bem do rigor que a matéria impõe, a notícia devesse indicar que o documento do ICN fazia uma menção explícita à fábrica em causa.

Uma outra notícia (mas não no PÚBLICO) a suscitar reacção foi a de que José António Cerejo assumira a categoria jurídica de assistente no processo Freeport. “Foi preciso ver noutros jornais”, constatou o leitor Sérgio Brito, interrogando: “O PÚBLICO não tinha obrigação de informar os leitores que um seu jornalista (...) se tinha constituído como assistente num processo em que não é queixoso nem acusado? Na história do jornalismo em Portugal quantas vezes é que esse desiderato já se verificou? Não estará em causa a habilidade de acesso ao processo para se tornar ‘a garganta funda’ – a confidencialidade da fonte, o eufemismo habitual... – a que os ‘jornalistas de investigação’ recorrem?”

Sobre a iniciativa, o provedor inquiriu o director do PÚBLICO, que explicou: “A lei permite que qualquer cidadão se constitua assistente em processos relativos a suspeitas de corrupção. O assistente passa a ter acesso ao processo dentro dos limites impostos por quem dirige a investigação. (...) Também se obriga a colaborar com o Ministério Público caso possua provas importantes para o decorrer das investigações. (...) Face ao pedido desse jornalista para se constituir assistente, entendi que devia autorizar, por duas razões: primeiro, porque colaborar com a investigação judicial em casos de interesse público não é incompatível com a profissão de jornalista nem pressupõe um qualquer juízo apriorístico sobre a culpabilidade de quem está a ser investigado; segundo, porque ao ter possibilidade de aceder a documentos em segredo de justiça o jornalista fica obrigado a esse segredo de justiça, mas isso não o impede de procurar seguir pistas que não tenham sido seguidas pela investigação. A relação com o segredo de justiça fica mais clara para o leitor, e o jornalista já não pode proteger-se alegando o sigilo das suas fontes se o violar, o que fará com que trabalhe de forma ainda mais responsável e ponderada. A relação com o Ministério Público também é mais clara: o assistente é alguém que quer colaborar com a justiça no esclarecimento da verdade (...). Não é a primeira vez que jornalistas pedem para se constituírem assistentes em casos como o actual (...)”.

Do ponto de vista ético, nada obsta, com efeito, a que um jornalista colabore com a justiça (embora se mantenha vinculado ao princípio do sigilo profissional quanto à confidencialidade das fontes). Mas existe nesta explicação um aspecto pouco claro: o compromisso principal do jornalista deixa de ser com os leitores para passar a ser com o aparelho judicial. Ou seja, há informações a que ele terá acesso mas não poderá noticiar porque legalmente está sujeito ao segredo de justiça (e se, de acordo com as palavras um tanto ambíguas do director, não encontrar “pistas que não tenham sido seguidas pela investigação”). Ora, um dos princípios do jornalismo independente consiste em não guardar notícias na gaveta, que é o que vai acontecer com Cerejo a partir do momento em que se tornar assistente no caso Freeport.
Quanto ao facto de o PÚBLICO não ter informado os leitores desta circunstância, justifica José Manuel Fernandes: “Até à data, o jornalista não teve qualquer acesso ao processo, não o tendo solicitado sequer. Só no momento em que isso sucedesse a forma como esse jornalista passaria a seguir o processo deveria ser tornada pública, logo noticiada no jornal (...). A ideia de que a informação devia ter sido dada antes resulta de um equívoco sobre o estatuto do assistente em casos como este. Parte do princípio de que o assistente é vítima ou acusação, quando, em sentido estrito, não é isso que sucede. Só em sentido lato poderemos considerar que se apresenta como vítima, pois, de acordo com o espírito da lei, e que justifica a possibilidade de qualquer cidadão se constituir assistente em casos como este, todos os cidadãos são vítimas de um acto de corrupção de que possa ter resultado um prejuízo público, como será o caso se se provar que houve corrupção e prejuízo público”.

Um outro leitor, sob anonimato, pergunta: “Como se deve classificar o texto de Clara Viana publicado na edição de 14 de Fevereiro [“O mundo pequeno do caso Freeport”, págs. 8/9]? É mesmo jornalismo? De referência?”

O trabalho mencionado traça o perfil de vários protagonistas judiciais envolvidos no processo, mencionando cruzamentos nas suas carreiras pessoais, profissionais e políticas, mas não extraindo daí qualquer conclusão. Escreve o leitor: “E por que não ousa a jornalista (...) tirar as conclusões com coragem? Porque teme as consequências, limitando-se cobardemente a chafurdar com insinuações? Mas não há no PÚBLICO uns seniores que ensinem esta gente?”

Não encontra aqui o provedor, contudo, motivo de reparo. O texto limita-se a transmitir informação que certamente será do interesse dos leitores, para melhor conhecerem os actores que do lado da justiça se movimentam nesta peça chamada Freeport.

CAIXA:

Da importância de um “de”

Reclama a leitora Carmen González Moura: “Como portuguesa descendente de uma família espanhola radicada há muitos anos em Portugal, não tive outro remédio se não habituar-me com um encolher de ombros ou voltando as costas à boçalidade anti-espanhola que continua a lavrar em Portugal, das elites ao povo. Mas seria de esperar de um jornal que faz um esforço para ser civilizado um mínimo de decência – na linha do respeito pelos direitos humanos, com que enchem a boca quando são os outros a pôr o pé em ramo verde. No passado dia 12 de Fevereiro, o PÚBLICO fez um título [pág. 6] usando o ditado que os portugueses gostam de usar quando falam dos espanhóis, a propósito ou a despropósito: ‘Espanha: Nem bom vento, nem bom casamento’. Li a notícia para ver se havia alguma razão que pudesse justificar o título. Não havia. O PÚBLICO não perceberá que desta forma perpetua e justifica as visões deturpadas dos outros que estão na base da xenofobia?”

Em Portugal circula de facto este ditado xenófobo, decorrente de circunstâncias históricas de todos conhecidas: ”De Espanha, nem bom vento nem bom casamento”. O editor apenas o parafraseou para invocar não o que vem de Espanha, mas o que se passa em Espanha: uma turbulência entre a hierarquia católica e o governo a propósito, entre outras coisas, da legalização dos casamentos homossexuais. No caso, a preposição “de” foi a fronteira entre o que seria de facto um título de mau gosto (se ela lá figurasse) e um outro perfeitamente admissível (como sucedeu).

Publicada em 22 de Fevereiro de 2009

DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR

Explicações do jornalista José António Cerejo sobre a notícia “Alteração da ZPE esteve na gaveta um ano e serviu para o Freeport”:

De facto a referência à Firestone não está entre aspas. Sou eu que digo que o documento diz, portanto não deduzo, que se trata de fábricas desactivadas, incluindo a Firestone. Se o leitor não acredita no jornal que compra e no jornalista que lê o problema é outro. Mas dizer que a manchete não é confirmada pela notícia é falso.

A verdade é que os documentos, até por razões técnicas, entre outras de espaços e de concordâncias gramaticais, não podem ser transcritos na íntegra. Neste caso o que está escrito na “análise final” do documento é que se propõe a revisão da ZPE “no sentido de...", elencando-se depois seis objectivos, um dos quais é “recuperar áreas com localizações de unidades industriais pré-existentes e uma área de construção consolidada adjacente, com medidas de compensação ambiental e uma intervenção urbanística requalificadora da área, tendo em conta a proximidade da ZPE”.

Na página anterior fala-se de algumas questões “que urgem ser abordadas para a redefinição” dos limites da ZPE, sendo que uma delas é a das unidades industriais cuja exclusão da ZPE é proposta. E logo a abrir diz-se que, “adjacentes à EN 119, existem três unidades fabris – a Firestone, actualmente desactivada, a Crown Cork and Seal, de embalagens e actualmente activa, e a central eléctrica de co-geração Matalobos – que se encontam incluídas nesta ZPE.” É a estas e não a quaisquer outras unidades industriais, até porque não havia outras dentro da ZPE, que se refere a “análise final” do documento sobre o qual Pedro Silva Pereira mandou seguir para Conselho de Ministros o projecto de decreto-lei a ele anexo.

José António Cerejo

Explicações do director do PÚBLICO sobre a constituição do jornalista José António Cerejo como assistente do processo Freeport:

1. A lei permite que qualquer cidadão se constitua assistente em processos relativos a suspeitas de corrupção. O assistente passa a ter acesso ao processo dentro dos limites impostos por quem dirige a investigação. O assistente também se obriga a colaborar com o Ministério Público caso possua provas que sejam importantes para o decorrer das investigações.

2. Após consultar o advogado que trabalha habitualmente com o PÚBLICO, e face ao pedido desse jornalista para se constituir assistente, entendi que devia autorizar, por duas razões: primeiro, porque colaborar com a investigação judicial em casos de interesse público não é incompatível com a profissão de jornalista nem pressupõe um qualquer juízo apriorístico sobre a culpabilidade de quem está a ser investigado; segundo, porque ao ter possibilidade de aceder a documentos em segredo de justiça o jornalista fica obrigado a esse segredo de justiça, mas isso não o impede de procurar seguir pistas que não tenham sido seguidas pela investigação. A relação com o segredo de justiça fica mais clara para o leitor e o jornalista já não pode proteger-se alegando o sigilo das suas fontes se o violar, o que fará com que trabalhe de forma ainda mais responsável e ponderada. A relação com o Ministério Público também é mais clara: o assistente é alguém que quer colaborar com a justiça no esclarecimento da verdade e a lei só permite que tal estatuto seja permitido a qualquer cidadão quando o tipo de crime afecta os fundamentos da sociedade em que vivemos. Finalmente o facto de o Ministério Público investigar um caso e um jornalista o seguir como assistente não deve derivar de qualquer presunção sobre o resultado da investigação, que pode terminar numa acusação ou num arquivamento, mas num dever de procurar a verdade.

3. Não é a primeira vez que jornalistas pedem para se constituírem assistentes em casos como o actual, mas não sei dizer quantas vezes isso já sucedeu.

4. A tramitação para que o jornalista se pudesse constituir assistente já se iniciara quando o caso voltou às primeiras páginas dos jornais, mas não tenho informação sobre se já foi despachada favoravelmente. Julgo que não. Só no momento em que isso sucedesse a forma como esse jornalista passaria a seguir o processo deveria ser tornada pública, logo noticiada no jornal, pois antes disso ele continuaria a trabalhar sem os limites e as potenciais vantagens da condição de assistente.

5. A ideia de que a informação devia ter sido dada antes resulta de um equívoco sobre o estatuto do assistente em casos como este. Parte do princípio de que o assistente é a vítima ou a acusação, quando, em sentido estrito, não é isso que sucede. Só em sentido lato poderemos considerar que se apresenta como vítima, pois, de acordo com o espírito da lei, de acordo com o que justifica a possibilidade de qualquer cidadão se constituir assistente em casos como este, todos os cidadãos são vítimas de um acto de corrupção de que possa ter resultado um prejuízo público, como será o caso, se se provar que houve corrupção e prejuízo público.

José Manuel Fernandes

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Free report

A livre informação não implica que um jornal amante do rigor e da independência não procure ser isento

A notícia indicia um inconfessado desejo, que não devia existir, de incriminar Sócrates

Alguns leitores sentiram-se incomodados pela cobertura do PÚBLICO ao caso Freeport – a polémica aprovação sob a responsabilidade de José Sócrates, enquanto ministro do Ambiente, em vésperas das eleições legislativas de 2002, de um centro comercial na Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo, em Alcochete.

“Na altura em que corre uma investigação judicial – e isto acontece repetidamente – os meios de comunicação (esse jornal incluído) criam um ambiente, um clima de suspeição tal que os nomes das personalidades apresentadas já aparecem como praticamente julgadas e condenadas”, escreve Maria Luiza Sarsfield Cabral, sintetizando o pensamento dos leitores que reclamaram. “Tomo como exemplo (por entre muitos outros...) o PÚBLICO de 30 de Janeiro, que vem repleto com o caso Freeport – 1ª pág., 2ª pág., 3ª pág., 4ª pág., 5ª pág. Cinco páginas quase inteiramente orientadas no sentido de formar a suspeição... – e, no fundo da pag. 4, como se fosse indiferente, talvez coisa de somenos, aparece então, em letra pequena, o texto integral do comunicado do procurador da República... Como é possível?”

“Durante uma semana o PÚBLICO ‘encheu’ – é o termo adequado e necessário – , quase na totalidade, as primeiras páginas com o caso Freeport e o primeiro-ministro”, constata Augusto Küttner de Magalhães. “Por vezes a qualidadade não joga com a quantidade e o inverso também é verdadeiro, e torna-se espantoso ir a uma banca de jornais e ver todas as primeiras páginas de todos os jornais com o mesmo tema, e só o mesmo, e espantosamente também o PÚBLICO, que costuma primar pela diferença, pela maior discrição! (...) Se a ideia única é transmitir culpa de actos do actual primeiro-ministro, talvez tenha em parte conseguido, mas isso fica melhor ser feito por outros jornais que não necessária nem obrigatoriamente o PÚBLICO”. E avisa Sérgio Brito: “Lá estão os ditos jornais de referência invocando a ‘liberdade, a verdade, a responsabilidade’, mas afinal o que os move é ‘a raiva’ (...), sendo verdade que esta pode matar o portador!”

Para o provedor, o assunto não é de somenos: envolve o nosso principal governante num acto cujas motivações políticas, apesar do estardalhaço criado à volta das “campanhas negras” (ou talvez por isso mesmo), ainda estão longe da clarificação, além de não se poder ignorar que o seu nome figura em processos por suspeitas de corrupção que estão em curso em Portugal e na Grã-Bretanha. Ou seja, o futuro deste país depende do desfecho do caso. Razão de sobra para o destaque que a imprensa “de referência” lhe dá.

“Sendo José Sócrates primeiro-ministro, é uma figura pública que deve ser sujeito ao mais rigoroso escrutínio no que diz respeito à sua vida pública, algo que este jornal nunca deixou de fazer quando encontrou situações duvidosas (foi no PÚBLICO, por exemplo, que se contou pela primeira vez um dos casos que envolvem o autarca do PSD Isaltino Morais, hoje em julgamento)”, defende o director deste jornal, solicitado pelo provedor a responder às reclamações dos leitores. “O caso Freeport é de indiscutível interesse público, e por vários motivos. Primeiro, porque, como o PÚBLICO investigou consultando toda a documentação relativa ao processo de licenciamento [de construção do centro comercial], este levanta muitas e legítimas dúvidas, a começar pela forma apressada e atabalhoada como foi aprovado o Estudo de Impacto Ambiental e como foi alterada uma lei num mesmo dia, por ‘acaso’ a três dias de eleições legislativas. Todos os elementos que recolhemos apontam para que, no mínimo, houve um tratamento especial de um projecto que colocava sérias dúvidas ambientais. Segundo, porque, como o PÚBLICO noticiou, a PGR [Procuradoria Geral da República] chamou a si este caso por ele ‘estava parado’, de acordo com o próprio procurador-geral. Terceiro, porque, como o PÚBLICO também noticiou, o director da Polícia Judiciária em funções quando o actual primeiro-ministro tomou posse afirmou que dera prioridade ao caso (...) até ser demitido do cargo por decisão conjunta do primeiro-ministro e do ministro da Justiça. Quarto, porque, como mostrámos de forma gráfica após a sua publicação noutros órgãos de informação, a carta rogatória enviada pelas autoridades inglesas, que não podem ser suspeitas de terem montado uma ‘campanha negra’, tem elementos suficientes para suscitar dúvidas que ainda não foram esclarecidas pelo então ministro do Ambiente, actual primeiro-ministro, nem pelas autoridades de investigação portuguesas”.

A outra questão que se coloca é a da culpabilidade, do facto de, como escreve Maria Luiza Sarsfield Cabral, as “personalidades apresentadas já aparece[re]m como praticamente julgadas e condenadas”. É preciso reconhecer aqui uma evidência em termos de funcionamento de uma sociedade aberta: o simples facto de se mencionar nos media a existência de uma suspeita de comportamento ilícito de uma figura pública, por muito equilibrado que seja o exercício do contraditório, expondo-se os argumentos em defesa do visado, lança sempre uma mancha sobre a imagem com que a opinião pública passa a olhar para essa personalidade. É um mecanismo decorrente do grau de exposição pública a que estão sujeitas as pessoas com notoriedade social, um preço decorrente da liberdade de expressão, que causará sempre debate em momentos como este mas que nunca desaparecerá. Por outras palavras: quem anda à chuva molha-se.

Esta ideia sagrada de free report (livre informação) não implica porém que meios de comunicação que apregoam no estatuto editorial a prática do rigor e da independência, como é o caso do PÚBLICO, não procurem a isenção na sua cobertura de casos controversos, garantindo “sempre aos acusados o direito de exporem os seus pontos de vista em pé de igualdade com os acusadores”, segundo os “Princípios e normas de conduta profissional” deste jornal, onde se estabelece ainda: “Em todas as circunstâncias, o PÚBLICO revela, apura, divulga; jamais denuncia ou persegue. (...) Só publica essas acusações quando delas obtém provas ou quaisquer outros elementos que o convençam da sua veracidade. (...) Qualquer informação desfavorável a uma pessoa ou entidade obriga a que se oiça sempre ‘o outro lado’ em pé de igualdade e com franqueza e lealdade. Só em casos excepcionais, e após autorização da Direcção, se pode contrariar o princípio da equidade”.

Terá então fundamento, à luz deste normativo, a queixa de Maria Luiza Sarsfield Cabral sobre a uma orientação nas páginas do PÚBLICO “no sentido de formar a suspeição”? De novo a palavra a José Manuel Fernandes: “Em todas estas situações, em muitas outras, sofremos pressões, em todas as que intervim enquanto director tive sempre o cuidado de que os factos fossem relevantes, o texto seco e directo, não existissem insinuações nem subentendidos. Posso ter cometido, aqui ou além, erros de avaliação, mas, quando está em causa o dinheiro dos contribuintes e bens públicos, é obrigação de uma imprensa livre não se contentar com os comunicados oficiais, assim como é obrigação de uma imprensa responsável evitar o melhor que puder as ratoeiras associadas à violação do segredo de justiça. É também sua obrigação dar todos os factos e elementos para que os leitores possam formar a sua opinião – e isso mesmo sucedeu na edição referida pela leitora: o texto mais importante, o que abre o Destaque, é o relativo à conferência de imprensa de José Sócrates; nesse texto refere-se logo a existência do comunicado da PGR; apesar de o comunicado estar disponível há muitas horas e de pouco acrescentar a um emitido dias antes, entendemos publicá-lo na íntegra, o que não sei se mais algum jornal fez; fizemo-lo com destaque, pois foi colocado numa caixa com fundo de cor, fórmula gráfica que chama a atenção dos leitores (...). Em suma: o PÚBLICO cumpriu com rigor o seu dever. Leitores como os que protestaram (...) terão paixões que, como jornalistas, tratamos de evitar, mas a que reconhecemos legitimidade (...). Viver em liberdade numa democracia implica não só aceitar como acarinhar uma imprensa livre, independente e plural, uma imprensa vigilante que, mesmo sem ter o poder de julgar, tem o dever de investigar e actuar, perdõe-se o inglesismo, como watchdog num sistema de pesos e contrapesos delineado constitucionalmente de forma a limitar o poder dos governos e, assim, impedir a sua actuação discricionária, antes impondo-lhes os limites da lei e a obrigação de prestarem contas aos cidadãos”.

Tudo muito bem no plano dos princípios – e o provedor nada tem a objectar, de forma genérica, à cobertura do caso feita pelo PÚBLICO. Mas não pode deixar de recordar que a manchete da edição em análise dizia “Caso Freeport: Prioridade à investigação acabou após a demissão de Santos Cabral da Judiciária”, ideia retomada no título da pág. 4: “Ex-director da Judiciária demitido por este Governo diz ter dado prioridade à investigação do Caso Freeport”. Ou seja, embora tudo aí seja autêntico, procura-se com esta redacção, sem o afirmar explicitamente e muito menos prová-lo, induzir na cabeça dos leitores a existência de uma relação de causa e efeito entre a demissão de um director da PJ que estaria empenhado na investigação do caso e a vontade de Sócrates em sabotar o processo, ideia confirmada no respectivo texto por uma frase que o rigor deveria ter banido: “Na altura, alguns observadores relacionaram essa demissão com o empenho posto na investigação do processo Freeport” (no mínimo, seria necessário dizer quem foram os “observadores”).

Será este um dos “erros de avaliação” de que se penaliza José Manuel Fernandes? A verdade é que se indicia aqui um inconfessado desejo de incriminação de José Sócrates. Para bem da credibilidade do PÚBLICO e da seriedade do seu tratamento de tema tão sensível (que no próximo domingo merecerá nova abordagem do provedor), era bom não existir tal intenção.

Publicada em 15 de Fevereiro de 2009

DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR

Carta da leitora Maria Luiza Sarsfield Cabral:

Gostava de lhe fazer uma pergunta: que poder tem o Provedor dos Leitores para impedir que o jornal - o PÚBLICO - colabore numa campanha como a que temos vindo a assistir no caso Freeport? Na altura em que corre uma investigação judicial - e isto acontece repetidamente - os meios de comunicação (esse jornal incluído) criam um ambiente, um clima de suspeição tal que os nomes das personalidades apresentadas já aparecem como praticamente julgadas e condenadas...

Tomo como exemplo (por entre muitos outros...) o PÚBLICO de 30 de Janeiro, que vem repleto com o caso Freeport - 1ª pág., 2ª pág., 3ª pág., 4ª pág., 5ª pág. Cinco páginas quase inteiramente orientadas no sentido de formar a suspeição ... - e, no fundo da pág. 4, como se fosse indiferente, talvez coisa de somenos, aparece então, em letra pequena, o texto integral do comunicado do procurador da República... Como é possível?

Informar não pode ser isto. E, por mais interessante que seja o jornalismo de investigação, os jornalistas de investigação não se podem confundir com falsos polícias ou advogados de acusação... Se a liberdade de informar é necessária, a ela tem de corresponder o dever de não contribuir para a difamação. Ou teremos como resultado que os jornalistas, ao fazerem de conta que denunciam a corrupção, acabem eles por corromper o jornalismo...

Não admira, assim, que cada vez mais gente diga que não lhe interessa os jornais...

Com os meus cumprimentos e votos de um são jornalismo.

Maria Luiza Sarsfield Cabral

P.S.: Depois de escrever esta carta, tive a feliz surpresa de ler um texto notável do vosso colunista Vital Moreira "O Caso Freeport como questão de Estado" [3 de Fevreiro]. Ainda bem. Mas, de novo, uma pergunta: qual o poder de um artigo contra dias e dias de atoardas de desinformação?

Cartas do leitor Augusto Küttner de Magalhães:

Penso que a qualidade do PÚBLICO, implica algum cuidado, alguma contenção na "forma e quantidade" como transmite algumas noticias, para não ficar demasiado "banal". Evidentemente, nunca deixando de dar notícias, o que seria até "traição" aos seus leitores diários, nos quais me incluo desde o 1º numero. Vem isto a propósito de durante uma semana o PÚBLICO "encher" - este é o termo adequado e necessário - , quase na totalidade as primeiras páginas com o caso Freeport e o primeiro-ministro, para além do que escrevia nas páginas interiores sobre o mesmo tema! Por vezes a qualidadade não joga com a quantidade e o inverso também é verdadeiro, e torna-se espantoso ir a uma banca de jornais e ver todas as primeiras páginas de todos os jornais com o mesmo tema, e só o mesmo, e espantosamente também o PÚBLICO, que costuma primar pela diferença, pela maior descrição!

Augusto Küttner de Magalhães

Desculpe voltar ao mesmo tema, mas penso ser importante para a qualidade do PÚBLICO ter algum cuidado quando "agarra" determinada noticia! Não sei qual o envolvimento de José Sócrates no caso Freeport, e, apesar dos atrasos da nossa justiça, "espera-se" que esta tudo esclareça. Sendo que acho que o PÚBLICO, seja quanto a José Sócrates (quanto a Dias Loureiro, se tivesse feito o mesmo!), seja relativamente a outro qualquer caso, a outra qualquer pessoa, não deve, claro que pode!, gastar tantas primeiras páginas de tantas edições consecutivas a "bater" no mesmo assunto. Se a ideia única é transmitir culpa de actos do actual primeiro-ministro, talvez tenha em parte conseguido, mas isso fica melhor ser feito por outros jornais que não necessária nem obrigatoriamente o PÚBLICO. A cada um o seu espaço, porque depois perde-se esse mesmo espaço, e é menos bom!

Augusto Küttner de Magalhães

Explicações do director do PÚBLICO:

O caso Freeport é de indiscutível interesse público, e por vários motivos.

Primeiro, porque, como o PÚBLICO investigou consultando toda a documentação relativa ao processo de licenciamento, este levanta muitas e legítimas dúvidas, a começar pela forma apressada e atabalhoada como foi aprovado o Estudo de Impacto Ambiental e como foi alterada uma lei num mesmo dia, por “acaso” a três dias de umas eleições legislativas. Todos os elementos que recolhemos apontam para que, no mínimo, houve um tratamento especial de um projecto que colocava sérias dúvidas ambientais.

Segundo, porque, como o PÚBLICO noticiou, a Procuradoria Geral da República chamou a si este caso porque ele “estava parado”, de acordo com o próprio procurador-geral.

Terceiro, porque, como o PÚBLICO também noticiou, o director da Polícia Judiciária em funções quando o actual primeiro-ministro tomou posse fez declarações afirmando que dera prioridade ao caso no período em que se manteve como director até ser demitido do cargo por decisão conjunta do primeiro-ministro e do ministro da Justiça.

Quarto, porque, como mostrámos de forma gráfica após a sua publicação noutros órgãos de informação, a carta rogatória enviada pelas autoridades inglesas, que não podem ser suspeitas de terem montado uma “campanha negra”, tem elementos suficientes para suscitar dúvidas que ainda não foram esclarecidas pelo então ministro do Ambiente, actual primeiro-ministro, nem pelas autoridades de investigação portuguesas.

Todas estas informações e muitas outras resultaram de investigações do PÚBLICO, tal como resultou de uma investigação do PÚBLICO que a Universidade Independente atribuíra em condições muito duvidosas um diploma de licenciatura a José Sócrates, tal como foi amplamente noticiado no PÚBLICO o caso da urbanização em Setúbal, no Vale da Rosa, que também foi aprovada em tempo recorde quando ele era ministro do Ambiente e chegou a ser investigado pela Judiciária, tal como foi o PÚBLICO que revelou o tipo de projectos que ele fez para a Câmara da Guarda nos anos de 1980, entre várias outras situações que provocaram sempre contra-ataques violentos referindo estar este jornal a realizar uma “campanha negra” e cujo (não) acompanhamento pela restante comunicação social suscitou uma investigação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social que chegou a conclusões muito polémicas e contestáveis.

Sendo José Sócrates primeiro-ministro, ele é uma figura pública que deve ser sujeita ao mais rigoroso escrutínio no que diz respeito à sua vida pública, algo que este jornal nunca deixou de fazer quando encontrou situações duvidosas (foi no PÚBLICO, por exemplo, que se contou pela primeira vez um dos casos que envolvem o autarca do PSD Isaltino Morais, hoje em julgamento, e em resultado de uma investigação levada a cabo pelo mesmo jornalista).

Em todas estas situações e em muitas outras sofremos pressões, em todas as que intervim enquanto director tive sempre o cuidado de que os factos fossem relevantes, o texto seco e directo, que não existissem insinuações nem subentendidos. Posso ter cometido, aqui ou além, erros de avaliação, mas, quando está em causa o dinheiro dos contribuintes e bens públicos, é obrigação de uma imprensa livre não se contentar com os comunicados oficiais, assim como é obrigação de uma imprensa responsável evitar o melhor que puder as ratoeiras associadas à violação do segredo de justiça.
É também sua obrigação dar todos os factos e elementos para que os leitores possam formar a sua opinião – e isso mesmo sucedeu na edição referida pela leitora: o texto mais importante, o que abre o Destaque, é o relativo à conferência de imprensa de José Sócrates; nesse texto refere-se logo a existência do comunicado da PGR; apesar de o comunicado estar disponível há muitas horas e de pouco acrescentar a um emitido dias antes, entendemos publicá-lo na íntegra, o que não sei se mais algum jornal fez; fizemo-lo com destaque, pois foi colocado numa caixa com fundo de cor, uma fórmula gráfica que chama a atenção dos leitores; o corpo da letra é idêntico ao do texto normal, a fonte é que é diferente.

Em suma: o PÚBLICO cumpriu com rigor o seu dever; leitores como os que protestaram nestas cartas enviadas ao provedor terão paixões que, como jornalistas, tratamos de evitar, mas a que reconhecemos legitimidade suficiente para que tenhamos algumas das cartas que nos enviaram.

Viver em liberdade numa democracia implica não só aceitar como acarinhar uma imprensa livre, independente e plural, uma imprensa vigilante que, mesmo sem ter o poder de julgar, tem o dever de investigar e actuar, perdõe-se o inglesismo, como watchdog num sistema de pesos e contrapesos delineado constitucionalmente de forma a limitar o poder dos governos e, assim, impedir a sua actuação discricionária, antes impondo-lhes os limites da lei e a obrigação de prestarem contas aos cidadãos.

Nesta casa ninguém anda à procura do seu “Watergate” particular, mas todos sabem que depois do caso Watergate nenhum poder está acima do escrutínio da comunicação social e da opinião pública e publicada.

José Manuel Fernandes

sábado, 14 de fevereiro de 2009

85 por 58

Por ter recebido esclarecimentos tanto do autor como de um dos editores do P2, o provedor clarifica que a referência, na sua última crónica, à troca do ano de 1958 pelo de 1985 no título de uma crónica de Pedro Mexia se deveu a um erro de edição não imputável a Mexia, que terá enviado à redacção o título correcto. Trata-se claramente de uma falha de edição, aliás, e nunca o provedor pretendeu imputar o contrário.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

A propósito da crónica "Controlo de qualidade"

Como leitor habitual do PÚBLICO tenho acompanhado os esforços do provedor para que este jornal tenha um mínimo de controlo de qualidade de modo a evitar que a sua leitura seja uma fonte de irritação pelo desleixo com que é produzido.

Veja por favor:

No dia 22/11/08:
1 - Numa só notícia (pág. 24):
“resultados poucos rigorosos” (destaque);
springlers antifogo” (é "sprinklers" - sistemas automáticos antifogo);
“escala de Ritcher”;
“José, sem-abrigo que há cerca de um mês ocupa o beiral de uma pequena edificação” – estaria a fazer concorrência às andorinhas?;
2 – Somália, “o país mais ocidental do continente africano” (pág. 19);
3 - “os inspectores interceptou uma carrinha” (pág. 26);
4 - Na notícia sobre o filme Wild Field, a ilustrar o “olhar duro e mágico sobre a estepe russa” temos a fotografia de uma pilha de bacalhau salgado (pág. 13). Curiosamente, a mesma fotografia que em 24/11/08 ilustra “Os prazeres do fiel amigo” (P2, pág. 13).

No dia 23/11/08:
1 - “maioria absolutas” (pág. 8);
2 - “a sua adeversária” (pág. 17);
3 - “Os peritos mediram 110 mililitros de água por metro quadrado” (pág. 15). A precipitação exprime-se em milímetros ou litros por metro quadrado. Obviamente que um dia de chuva de grande intensidade não pode corresponder a 110 mililitros mas sim a 110 litros por metro quadrado. A especial invocação de “peritos” é pretensiosa. Em Caracas há estação meteorológica.

No dia 24/11/08:
1 - “Caixa de Providência” (pág. 9, duas vezes);
2 - “Israel tem de estar pronta” (pág. 12);
3 - “o Hamas tomou pelas armas tomou o controlo da Faixa de Gaza” (pág. 12);
4 - “a taxa de 39,6 por cento (…) será aplicada aos salários mais elevados” (pág. 13) - será aos rendimentos mais elevados?;
5 - “Timothy Geithner”/”Timothy Geithnerd” (pág. 13);
6 - “Faymann”/”Faymnann” (pág. 17);
7 - “Biencard Cruz/Bienchard Cruz” (pág. 18);
8 - “vai [de IVA] ser reduzida em 2,5 pontos percentuais”/”redução de dois pontos percentuais” (pág. 39);
9 - “embargo de propriedades de particulares incapazes de pagar as hipotecas” (pág. 39).

Já que é óbvio que o controlo de qualidade durante a produção não funciona, sugiro um controlo ao produto acabado. Uma revisão diária, com a correcção dos erros do que foi publicado, afixada num painel, teria certamente um efeito salutar. Entretanto, a utilização de um corrector ortográfico e gramatical limitaria os casos de ignorância ou desleixo mais chocantes.

A. F. Neiva Correia

Ainda a propósito de macrocefalia

Concordo com a opinião de Rui Tavares na "Crónica sem dor" de hoje (17/09/2008). Só não acho correcto que durante toda a primeira metade da crónica se refira a "centro da cidade", "Rua da Madalena", "Baixa" e ainda "Graça" sem ter o cuidado de esclarecer de que cidade está a falar. É da "baixa" do Porto ou de Coimbra? É do "centro" de Faro ou de Braga? E "Graça" é uma zona de Bragança ou Lisboa? Num jornal de cariz nacional, os seus jornalistas deveriam deixar de olhar para o umbigo e ver mais longe: ter sempre presente que estão a escrever para o país inteiro!

Fernando Cardoso

Chávez e o carajo


No artigo intitulado: "EUA expulsam embaixadores da Bolívia e Venezuela", publicado em 13 de Setembro de 2008, o jornalista Nuno Amaral escreve: "Vão para o inferno, ianques de merda, nós somos pessoas dignas. Vão para o inferno cem vezes". Todos ouvimos as palavras de Hugo Chávez na televisão, todos as lemos em outros órgãos de informação! Só no PÚBLICO elas são citadas desta forma! Mesmo não sendo um profundo conhecedor da língua, nunca eu confundiria "carajo" com "inferno"! Com que intenção, ou por que razão, o jornalista deturpa as palavras de Hugo Chávez? Terá o jornalista a noção de que não andamos para aqui todos distraídos? Ou será que a correcta citação lhe é indiferente?

Com que confiança, poderei continuar a ler "notícias" neste jornal? Será que neste jornal já foram deturpadas afirmações de outros? Terá o dito jornalista um mínimo de respeito pelos que ao comprar o jornal lhe pagam o ordenado? Não há, na redacção deste jornal, quem verifique a correcção dos artigos publicados?

Luís Lima

Controlo de qualidade

Insiste-se na correcção de pequenos erros que, de tanto se repetirem, afectam a imagem do PÚBLICO perante os leitores

A crónica de Pedro Mexia tem por título “Sinatra em 85”, mas fala do cantor em 1958

A qualidade do serviço que o PÚBLICO presta quotidianamente aos leitores afere-se não apenas pelas grandes opções editoriais mas também pelos pormenores que, à força da sua repetição, acabam por moldar a imagem do jornal. Apesar de o provedor já ter referido este aspecto em mais do que uma crónica, a contínua repetição de pequenos erros implica uma vigilância permanente e a insistência na sua periódica exposição, na expectativa de uma profilaxia que a redacção do PÚBLICO tarda em aplicar.

Falemos, por exemplo, da sintaxe, que nem sempre é a mais feliz, obscurecendo a narrativa e deixando o público na dúvida sobre o que se quer dizer. O leitor José Oliveira queixou-se pertinentemente do título principal da pág. 28 do PÚBLICO de 7 de Dezembro: “Académica volta a vencer três meses depois graças a golo a dois minutos do fim de Orlando”. Parafraseando Mark Twain, o “fim de Orlando” terá sido ligeiramente exagerado, e esse é o mote para a irónica reclamação: “Já vi morrer gente (incluindo a minha mãe), e sei que não é nada fácil, mas... que é isto comparado com os dois minutos finais do jogador Orlando?” Na verdade, como propõe o leitor, o título deveria ter sido redigido desta forma muito mais lógica, atendendo ao que se pretendia noticiar: “Académica volta a vencer três meses depois graças a golo de Orlando a dois minutos do fim”. E Orlando continuava vivo…

Idêntico mal-entendido surge nesta frase da crónica “A Minha TV” de 8 de Dezembro: “Tudo dependerá, basicamente, do à-vontade face às câmaras do anfitrião”. As câmaras não serão do anfitrião, mas o à-vontade sim, pelo que a ideia que o autor pretendia transmitir terá sido esta: “Tudo dependerá, basicamente, do à-vontade do anfitrião face às câmaras”. O mesmo problema surge na mesma crónica um mês depois, 8 de Janeiro: “Vítor Constâncio declarou que Portugal tinha entrado em recessão em todos os noticiários do dia”. Se Portugal estivesse em recessão só nos noticiários do dia, estávamos nós bem, mas é pouco provável que o governador do Banco de Portugal se preocupasse em anunciá-lo. O que se passou foi que “Vítor Constâncio declarou em todos os noticiários do dia que Portugal tinha entrado em recessão”, como se escreveria melhor.

Dizia-se na pág. 15 de 28 de Agosto último: “A polícia deteve Gorki Aguila, da banda Porno para Ricardo, cuja música rock com laivos punk circula de um modo semiclandestino, na sua casa em Havana”. Um relato claro imporia escrever antes que “a polícia deteve, na sua casa em Havana, Gorki Aguila, da banda Porno para Ricardo, cuja música rock com laivos punk circula de um modo semiclandestino”.

A questão é antiga. Ainda a propósito de sintaxe, atente-se no reparo de um leitor anónimo relativo à manchete de 3 de Março do ano transacto: “Onde se escreve ‘Parlamento vai passar a ter acesso e a fiscalizar os segredos de Estado’, devia ter-se escrito ‘Parlamento vai passar a ter acesso aos segredos de Estado e a fiscalizá-los’. Quando duas ou mais palavras têm o mesmo complemento regido de preposição, é necessário que esta convenha a cada uma das palavras consideradas separadamente. O erro do PÚBLICO é grave e está, infelizmente, generalizado”.

Apesar da reiterada denúncia pelo provedor daquilo que designou como “praga de Catual”(e que já se dispensa de definir), a epidemia teima em manter-se, como se vê por estas mais recentes manifestações, recolhidas da leitura ocasional do PÚBLICO: “Martim Cabral foi dos poucos que não gostou do discurso de Obama” (“O Inimigo Público”, 22 de Janeiro, pág. 8); “Tereza era uma daquelas pessoas que devia ter continuado a ser jornalista” (20 de Janeiro, pág. 43); “uma das coisas que me ‘atrai’ na política” (P2, 20 de Janeiro, pág. 2); “um dos aspectos que terá desagradado a uma boa parte do público” (P2, 20 de Janeiro, pág. 10); “uma dimensão hiperbólica da força é outro dos aspectos que lhe foi apontado” (idem); “O hotel da Quinta do Lago é um dos que está fechado com indicação de obras” (legenda de foto, 19de Janeiro, pág. 18); “A TAP foi uma das transportadoras que cancelou pedidos à Airbus (legenda de foto, 18 de Janeiro, pág. 38); “um dos comentários mais curiosos que tem vindo a lume” (P2, 16 de Janeiro, pág. 18); “A leitura dos jornais foi um dos itens que entrou na lista” (14 de Janeiro, pág. 10); “Era um dos nomes que certamente mais me ocorreria” (13 de Janeiro, pág. 9); “uma das séries mais curiosas que tem aparecido recentemente” (P2, 10 de Janeiro, pág. 16); “um dos países que tem sofrido com a crise do gás russo” (legenda de foto, 9 de Janeiro, pág. 1); “uma das marcas que, desde logo, distinguiu a sua abordagem” (“Ípsilon”, 9 de Janeiro, pág. 24); “É o único na Península Ibérica e um dos cinco que, a nível mundial, não recebe apoio de entidades privadas, autárquicas ou governamentais” (entrada de artigo, 4 de Janeiro, pág. 18); “Portugal está, nesse grupo, entre os que melhor paga aos professores” (P2, 13 de Dezembro, pág. 3) “Negócio do luxo é dos que menos sofre com a crise em Portugal” (12 de Dezembro, título principal da pág. 39); “Um dos pólos que deu voz a essa mesma ‘oposição consentida’” (8 de Dezembro, pág. 8); “foi um dos soldados israelitas que participou na invasão do Líbano em 1982” (P2, 5 de Dezembro, pág. 14); “um dos dinamarqueses que, com o seu enorme talento, colocou a Dinamarca no mapa do mundo durante o século XX” (1 de Dezembro, pág. 15); e "foi uma das maiores a ocorrer em Damasco" (28 de Setembro, pág. 13).

Mas também a falta de concordância em género ou número, outra pecha já aqui mencionada, continua a atacar em força: “Importância que, diz ele, foram pedidos por ‘um gabinete de advogados’ ao representante da Freeport” (P2, 25 de Janeiro, pág. 2); “Comemorações do fim do regime de Pol Pot junta milhares de pessoas nas ruas” (título, 8 de Janeiro, pág. 17); “O aumento dos custos de produção do jornal, especialmente do papel, que pode chegar aos 30 por cento em 2009, não nos permitiram outra alternativa” (5 de Janeiro, pág. 36); “Indignação e medo do frio flui na Ucrânia” (3 de Janeiro, pág. 12); “Aquelas organizações juvenis, nomeadamente a Juventude Hitleriana, foi mais do que um simples modelo inspirador” (“Ípsilon”, 2 de Janeiro, pág. 22); “Já a família Elias, com as suas três crianças, sonham com o dia em que serão auto-suficientes” (destaque de artigo, 27 de Dezembro, pág. 8); “Todos a quem falámos [da oferta do Governo português] ficou contente com a ideia” (17 de Dezembro, pág. 5); “O comentário às faltas injustificadas dos deputados dada pelo dr. Almeida Santos” (17 de Dezembro, pág. 38); “As entradas de novos investidores diminuiu drasticamente” (16 de Dezembro, pág. 2); “É preciso ficar provado em tribunal que o uso pelas empresas das designações light violam de facto as leis sobre publicidade enganadora” (16 de Dezembro, pág. 15); “Os motins que as autoridades gregas não são capazes de refrear e que põe em causa o Governo de Karamanlis” (10 de Dezembro, pág. 3); “Os riscos de haver carne de porco irlandesa contaminada com dioxinas é mínimo” (9 de Dezembro, pág. 1); "As dimensões da greve dos professores reforçou a sua posição" (destaque do editorial, 4 de Dezembro); “Rebelde Way, os Morangos com Açúcar da SIC, começaram ontem” (“A minha TV”, 26 de Agosto).

E depois há a proverbial dificuldade de alguns jornalistas em lidar com números, como nas frases “Só entraram no país 30 toneladas, seis já foram apreendidas, 26 seguiram para fábricas de transformação de enchidos [o que dá 32 toneladas e não 30]” (9 de Dezembro, pág. 1) ou “O ex-marido de Madonna, Guy Ritchie, deverá arrecadar 50 mil libras, mais de 55,7 milhões de euros [ele visa o segundo valor; ela gostaria de ficar pelo primeiro]” (16 de Dezembro, pág. 14).

Por vezes, numa só peça, adiantam-se números diferentes para a mesma coisa. Acerca da fraude de Bernard Madoff, diz-se em 16 de Dezembro (pág. 2) que as perdas totais ascendem a 37,5 mil milhões de euros, mas, como notou um leitor, no quadro de lesados em anexo só uma das “vítimas”, Walter M. Noel Jr., “perdeu 56 mil milhões de euros”. Na pág. 9 do P2 de 23 de Janeiro, fala-se de O Estranho Caso de Benjamin Button e das “suas 23 nomeações” para os Óscares, mas mais à frente refere-se outro filme com “10 nomeações, abaixo das 12 de O Estranho Caso de Benjamin Button”. O título de uma notícia de 11 de Janeiro na pág. 3 indica que “50 apoiam ‘nação eleita’ em Lisboa”, enquanto o início do texto refere: “Um grupo de 60 pessoas concentrou-se ontem frente à embaixada de Israel”. E o quadro de galardões ganhos por Portugal em Jogos Olímpicos publicado já em 22 de Agosto (pág. 2) especifica quatro medalhas de ouro (1984, 1988, 1996 e 2008), mas a soma final indica serem apenas três. Quanto à crónica de Pedro Mexia em 20 de Dezembro, tem por título “Sinatra em 85”, enquanto o texto narra as aventuras do cantor em 1958.

E qual a novidade do título “Hoje vão morrer sete pessoas na Colômbia” (13 de Dezembro, pág. 19)? Num país com quase 45 milhões de habitantes, seria aliás estranho morrerem só sete num dia. O que se queria noticiar era a estatística de vítimas da violência naquele país, mas esse aspecto deveria constar do título.

CAIXA:

Pérolas

Sentado a um computador numa sala de redacção, o jornalista tem hoje acesso a uma infinita rede de informações capaz de o impedir de cometer os erros de natureza enciclopédica que tanto irritam alguns leitores mais atentos. Mas eles continuam a acontecer. Escreve Alexandra Lucas Coelho, na sua crónica do “Ípsilon” de 9 de Janeiro: ”Não me lembro de alguma vez pensar nas Maurícias. (…) Mas mal entrei neste ‘Caçador de Tesouros’, as Maurícias começaram a aparecer no Tejo”. Não existe um arquipélago chamado Maurícias, mas uma ilha Maurícia (a confusão provém do nome inglês: Mauritius). Considera Pedro Mexia na sua coluna de 6 de Dezembro: “Messiaen explicou que o quarteto tinha oito movimentos”. Trata-se de um estrangeirismo: em português diz-se “andamentos”, não “movimentos”. Na notícia "[Anthony] Hopkins estreia-se como maestro", na secção ”Pessoas” de 22 de Outubro, falava-se do “actor norte-americano”, que é britânico (mais concretamente, galês). E não custaria nada converter em hectares ou ares os “acres” (medida não usada no continente europeu) mencionados na pág. 48 de 27 de Junho. “O dever de informar correctamente é mais do que traduzir directamente do inglês”, escreveu Filipe de Menezes, o leitor que reclamou.

Publicada em 8 de Fevereiro de 2009

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O seu a seu dono

Fui o redactor do texto que lhe enviei por e-mail no passado dia 15 de Janeiro [acerca do trabalho "Há católicas felizes com maridos muçulmanos", com chamada à pág. 1 do PÚBLICO de 15 de Janeiro]. Com surpresa vi no blogue do Provedor dos Leitores que o meu texto aparece como sendo da autoria de Francisco Pereira. Em nota, esclarece o Senhor Provedor que, iguais àquela, recebera duas outras cartas. Nelas se incluindo, muito provavelmente, a minha.

Depois de ter tido a oportunidade de lhe endereçar aquele meu texto a propósito de reportagem que, que pelo visto, indignou mais leitores, fiz questão de partilhá-la com a blogosfera, através do meu blog. Admito que tenha sido por esta via que outros, concordando com o texto, o tenham feito seu e o tenham enviado para o Senhor Provedor. Não me importo minimamente que haja quem pretenda fazer suas palavras que são minhas, mas não creio que lhe tivesse sido impossível (por mero recurso à cronologia) apurar o verdadeiro autor da carta. Não há, como é evidente, especial gravidade nisto, mas registo, não sem algum desconforto, a deselegância, por certo involuntária, cometida. Fica o meu desabafo, proporcional às elevadas funções que exerce.

Nuno Pombo

NOTA DO PROVEDOR: Consultada a sua caixa de correio electrónico, o provedor confirma que o referido e-mail enviado pelo leitor Nuno Pombo foi o primeiro de três chegados no mesmo dia com assinaturas diferentes. Deveria por isso ter sido o seu nome mencionado no blogue do provedor, e não o de outro remetente do mesmo texto. O provedor pede desculpas ao leitor.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Prostituição intelectual

Ao ler a referência à minha carta na coluna de hoje do provedor, concluo que a sua isenção já está ao nível do jornal!

Da OCDE ou de peritos reconhecidos pela mesma (ver o prefácio da directora das políticas de Educação da OCDE e o que a mesma disse sobre o que se passou no 1º ciclo em Portugal), o que eu quis ressaltar é que o assunto merecia mais relevência do que a notícia sobre o "amigalhaço" Cavaco Silva no sobe e desce. E, no que diz respeito ao "jornalismo de sarjeta", tinha a ver com o título escolhido para a notícia ["Peritos estrangeiros que avaliaram reformas do Primeiro Ciclo sugerem abolir chumbos"], que não era inocente, dadas as acusações de facilitismo reiteradas ao Ministério da Educação.

Assim, e dada a sua leitura do que escrevi, e em face de tantas outras cartas a si dirigidas, concluo que um provedor do leitor tinha de ser na verdade um leitor isento e qualificado e nunca um jornalista ou ex-jornalista, porque não há classe mais corporativa em Portugal do que a da comunicação social, pois se assim não fosse muitos jornalistas já estariam presos, e mesmo quando foram condenados (apenas a um ano, como o caso de Inés Serra Lopes, quando deveriam ser bem mais!), lá continuam na mesma, a comentar em meios de comunicação ditos de referência, como se nada se passasse.

Reitero o que me apraz dizer: cada vez mais entendo que a comunicação social em Portugal - basta ver a propriedade da mesma e quantos directores são eleitos - não passa de uma prostituição - intelectual, pelo menos - de luxo.

Sérgio Brito

A palavra certa

Ao jornalismo independente cabe a criteriosa escolha dos termos mais adequados a cada situação e que melhor defendem a isenção do jornalista


Era obrigação dos jornalistas não tomarem por boa a atribuição da autoria do relatório à OCDE, sugerida também por Sócrates

Um dos casos políticos da semana, que fez José Sócrates suar as estopinhas no parlamento, ocorreu na segunda-feira com a apresentação de um relatório sobre as mais recentes reformas do sistema de ensino em Portugal, que a propaganda governamental apresentou como sendo elaborado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), mas que não passou de uma avaliação particular encomendada pelo Ministério da Educação.

O que não obviou a que, no próprio dia, o PUBLICO.PT noticiasse, com base num despacho da agência Lusa, o “encerramento da cerimónia de apresentação do relatório da OCDE sobre política educativa para o primeiro ciclo”. Na edição seguinte em papel, o PÚBLICO já se precavia, falando apenas em “estudo internacional (…) a partir de um relatório nacional, preparado pela tutela”, mas sem antecipar o embaraço político resultante da exploração da ambiguidade pelo executivo.

Ainda reclamou, sem razão, o leitor Sérgio Brito pela escassez da “referência à avaliação do 1º ciclo feita pela OCDE”, classificando como "jornalismo de sarjeta" a remissão da notícia para o interior do jornal. Em sentido contrário, escreveria mais tarde outro leitor, Luís Carlos: “Uma vez que o primeiro-ministro deixou claro na Assembleia da República que nunca referiu que o relatório era da OCDE, questiono a redacção e a veracidade desse elemento presente na notícia”. Mas na altura já a questão não se colocava.

Este é apenas um dos muitos exemplos onde se reflecte a delicadeza presente na escolha das palavras ou expressões mais adequadas para descrever certas ocorrências. No caso vertente, seria obrigação profissional dos jornalistas não tomarem por boa a atribuição, pelos assessores governamentais, da autoria do relatório à OCDE (nem a sugestão que Sócrates, na referida cerimónia, fez no mesmo sentido), ou, não o podendo confirmar, resguardarem-se citando a fonte que fazia tal imputação.

Desde a invenção da linguagem que a escolha das palavras na comunicação entre seres humanos não é inocente. A História regista mesmo conflitos e cismas com origem no uso das palavras e no que se entende como sua correcta interpretação. Ao jornalismo independente cabe a criteriosa escolha dos termos que melhor correspondem a cada situação e melhor defendem a isenção do jornalista e do seu órgão de informação. Apesar da multiplicidade de sinónimos, afinidades e aproximações lexicais que enriquece qualquer vocabulário, o rigor de muitos relatos impõe numerosas vezes a opção pela palavra certa («le mot juste», na consagrada expressão francesa), e não outra de significado idêntico mas desajustada à circunstância.

Muitas das reclamações que o provedor recebe dos leitores do PÚBLICO têm a ver com a utilização alegadamente errada que os jornalistas fazem de certas palavras – e cabe falar do assunto, já que, não poucas vezes, essas objecções são pertinentes.

Um dos primeiros protestos nesse sentido recebidos pelo actual provedor foi de um leitor anónimo que chamou a atenção para a passagem de uma notícia de 17 de Abril do ano passado onde se escrevia que “o irmão de Avelino Ferreira Torres, Joaquim, morreu a 21 de Agosto de 1979, supostamente assassinado em Paredes”. E inquiria: “’Supostamente’ porquê? Há dúvidas que mais alguém desconheça sobre o seu assassínio em 1979? O conhecimento ou ignorância do jornalista determinam o grau de veracidade e certeza sobre um facto?” Ao contrário da atribuição à OCDE do relatório sobre o ensino básico, é público, de facto, o que sucedeu ao homem cujo corpo foi descoberto crivado de balas nesse fatídico dia de há quase 30 anos, pelo que se torna descabido mencionar a presunção de um homicídio mais do que comprovado.

Outras vezes a escolha das palavras relaciona-se com princípios de equilíbrio e não discriminação, plasmados por exemplo no 8º dos Princípios Gerais do Livro de Estilo deste jornal: “O jornalista do PÚBLICO recusa todos os preconceitos e estereótipos de linguagem que firam a sensibilidade comum em assuntos que envolvam idade, etnia, origem nacional, religião, opção ideológica, orientação sexual ou sexo”. Titulava o P2 na pág. 20 da sua edição de 20 de Dezembro: “Alguma vez enganou o seu marido?” Para depois indicar na entrada: “Ao longo de 15 anos, de 1991 a 2009, esta pergunta foi colocada a milhares de norte-americanos de ambos os sexos”. Obviamente, o título certo deveria ser: “Alguma vez enganou o seu cônjuge?”. Mas a escolha denota sexismo, como se “enganar” fosse um exclusivo feminino, de que os homens estivessem isentos.

Algumas palavras denunciam também a macrocefalia de quem produz um jornal que porém se reclama de expansão nacional. Escreve-se por exemplo, na pág. 7 do P2 de 18 de Janeiro: “Viveu na Figueira da Foz e mais tarde veio estudar para Lisboa”. Mas o mais adequado seria: “Viveu na Figueira da Foz e mais tarde foi estudar para Lisboa”.

Para os leitores habitando fora da capital, não será fácil, com efeito, aceitar a forma como às vezes se solta a linguagem de um jornal com redacção em Lisboa. “Poderá nevar em todo o litoral incluindo Lisboa”, titulava o PUBLICO.PT em 9 de Janeiro, e Augusto Küttner de Magalhães, do Porto, questionou com justeza a razão para se ter destacado esta cidade numa faixa de terra que vai de Caminha a Vila Real de Santo António: “Lisboa (…) é uma região que por qualquer motivo merece mais relevo?”

O mesmo leitor havia também reclamado em 1 de Novembro pela notícia “Administração da Linha Saúde 24 suspende sem nota de culpa enfermeira subscritora da carta à ministra Ana Jorge” (pág. 6), que na secção “Sobe e desce” dessa edição levou à colocação da titular da Saúde, Ana Jorge, com uma seta para baixo: “Não é nenhum escândalo suspender sem nota de culpa (…), e não é isso que pode ser noticia! A suspensão sem perda de retribuição de um trabalhador, a ser alvo de um processo disciplinar, não implica de imediato a entrega da nota de culpa; esta será entregue posteriormente! Este procedimento existe há anos, (…) e é prática comum - quando se torna a relação de trabalho insustentável! O titulo faz crer quem o lê que foi cometida uma ilegalidade! Não é o caso, e para cúmulo, na ultima página, é feita um seta descendente, voltando-se a referir a mesma forma de possível má actuação!”

Reclamação de idêntico teor fez o leitor apenas identificado por Nuno a respeito de uma notícia sobre o encerramento da livraria Byblos em Lisboa, surgida no PUBLICO.PT de 20 desse mês, e onde se dizia que “os colaboradores da Byblos não tinham sido informados pela administração sobre o futuro da empresa”: “De quem raio é que falam quando se referem aos colaboradores? (…) Não entendo esta novilíngua, que mistura conceitos de forma acrítica e ideológica. Um ‘colaborador’ é uma coisa muito diferente de um trabalhador, que tem de cumprir ordens e um horário, de obedecer a uma hierarquia. Um colaborador é um fulano que dá uma mãozinha, e é por ser um tipo catita. Um bocadinho de rigor não lhes fazia mal nenhum. Talvez até descubram um instrumento legal chamado Código do Trabalho e não Código da Colaboração”.

Outro leitor anónimo objectou ao conteúdo da notícia “Colecção de obras de arte de Jorge Amado vai ser leiloada para salvar fundação” (também com origem na Lusa), colocada no PUBLICO.PT a 15 de Novembro, na parte em que se dizia que “a fundação é um centro cultural e detém todo o acervo do escritor”: “É lastimável que um jornalista (…) confunda ‘acervo’ com ‘espólio’. O site Ciberdúvidas da Língua Portuguesa esclarece: ‘Pode dizer acervo bibliográfico para designar um conjunto de livros e documentação. Não confundir com espólio (os bens, literários ou não, que ficam de quem morre)’. Esta minha nota constitui uma chamada de atenção (…) acerca de um uso negligente da língua portuguesa (…) [n]os media, sector que detém uma significativa quota-parte de responsabilidade na manutenção e aprimoramento do nosso idioma”.

Recomendação do provedor. O vocabulário usado em matéria jornalística merece cuidada ponderação antes de passar a letra de forma. Cada palavra tem um significado próprio, e da sua escolha podem depender o rigor e a isenção de uma notícia ou de uma reportagem.


Caixa:

De “padras” a “bispas”

Numa discussão sobre terminologia, não podia faltar a linguagem religiosa, criticada pelo leitor Augusto Dias, primeiro já em 6 de Julho último: “O vice-mayor de Londres, Ray Lewis, foi tema da notícia ‘Vice do mayor de Londres forçado a demitir-se’ (secção Mundo). Desde logo, o título (…) merece reparo: ninguém é vice de ninguém; é-se adjunto, número dois ou substituto; ou, no caso, vice-mayor. Não seria correcto, por exemplo, dizer que Afonso de Albuquerque foi ‘vice do Rei de Portugal’. Mas é no texto que se encontra o erro mais grave e que pode mesmo prejudicar a análise do facto: é quando o referido senhor é classificado como ‘padre’. Ora, o vice-mayor de Londres é, evidentemente, um pastor protestante, como, desde logo, sugere a própria notícia, ao informar que ele é ‘vigário numa paróquia de West Ham’. Trata-se de uma falta cultural relativamente comum – o que não lhe retira gravidade – e que interessaria corrigir. ‘Padre’ é uma designação exclusivamente usada para os sacerdotes católicos e é, de forma geral, recusada terminantemente pelos ministros das religiões protestantes”.

E o mesmo leitor voltou à carga três dias depois: “No artigo intitulado ‘Igreja de Inglaterra aprovou a ordenação de mulheres bispo’, diz-se: ‘Desde 1994 que as mulheres podem ser ordenadas padres". Agora não é só o caso de uma incorrecta tradução, a qual devia ser ‘sacerdote’, ‘pastor’ ou ‘clérigo’, mas o chocante de chamar ‘pai’ a uma mulher; quando muito, a sacerdotisa deveria ser chamada ‘madre’... Mas ainda mais extraordinária é a ‘invenção’ das ‘bispas’! Seguindo o mesmo critério, mulheres padres deveriam chamar-se... ‘padras’. ’Bispo’, como é sabido, [vem] do latim ‘episcopus’; tenho grandes dúvidas sobre o latim ‘episcopa’, mas, ainda que existisse, ‘bispas’ não, por favor! Assim, entre ‘bispas’ e mulheres-‘padre’, vai a terminologia religiosa do PÚBLICO!”

Publicada em 1 de Fevereiro de 2009