De novo, a prática informativa ao estilo “sei que é assim e o público só tem que acreditar”
Duas notícias de natureza policial levam o provedor a reincidir num tema. O leitor Amílcar Gomes da Silva fala em “falta de rigor e respeito pelos leitores” a propósito do título “Investigadores da PSP ameaçam abandonar serviço em desacordo com subsídio de risco”, na pág. 5 da edição de 25 de Junho: “Perante tão afirmativo e grave título ninguém resiste a ler o artigo. Com espanto, lê-se: ‘Os 1600 polícias da PSP que trabalham na área de investigação criminal ponderam pedir a transferência para outros serviços’. Mas não se encontra qualquer resquício que seja de como o autor consegue provar tal afirmação. A única fonte (onde está o contraditório?), o dirigente sindical Paulo Rodrigues, diz apenas: ‘Confirmo que estamos a receber muitas reclamações de associados que trabalham na investigação criminal’. Qualquer jornalista, honesto e rigoroso, qualidades mínimas para a profissão, só pode escrever que a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia, na pessoa do seu presidente (e certamente também muitos polícias), quer que o subsídio de risco seja um dado valor e que por não sê-lo está a receber muitas reclamações. Escrever que 1600 polícias de investigação criminal ‘ponderam pedir a transferência’, só por transmissão de pensamento. Ou será que o jornalista ouviu-os a todos, acha que muitos é sinónimo de todos, teve acesso a algum inquérito individual com essas respostas ou é a sua convicção? Isto não é jornalismo, é pura agit-prop. É criação de factos políticos para determinar uma agenda política. Com ‘notícias’ destas pode o jornal ser credível?”
Também sem citar qualquer fonte, o mesmo jornalista, José Bento Amaro, escreveu a notícia que fez a manchete de 17 de Julho: “Há 1,4 milhões de armas ilegais em Portugal”. O que motivou o mesmo leitor a recorrer, desta vez, à arma da ironia: “Venho, encarecidamente, solicitar a rectificação da notícia. Posso garantir que em Portugal não existem 1.400.000, mas sim 1.400.002 armas ilegais. O avô da minha mulher, que foi sargento na I Guerra Mundial e era caçador, deixou em herança duas armas. Um revolver Browning (quase miniatura) e uma caçadeira. (...) Das ditas armas (...) nunca foi encontrado qualquer documento, nem as declarámos, porque para nós são autênticas antiguidades. Portanto, estão manifestamente ilegais. Como não fomos perguntados pelo pressuroso jornalista, afiançadamente não foram contabilizadas, e, a bem do rigor e do jornalismo de excelência, agradeço que corrijam a notícia”.
No caso, o jornalista não necessitaria de inquirir individualmente, porque na notícia atribuiu aquele número a uma estimativa policial. A questão é que nenhuma fonte, da polícia ou fora dela, identificada ou não, surge a afirmá-lo.
O provedor solicitou atempadamente esclarecimentos a José Bento Amaro, não tendo porém recebido resposta. Mas não pode deixar de lembrar mais uma vez que existe um problema nesta tendência de produzir notícias sem mencionar a sua origem (e que não é apenas do PÚBLICO, mas do jornalismo português em geral). O método contraria as elementares regras ditadas pelas boas práticas jornalísticas. Ao retirar-se ao público o conhecimento da fonte da notícia, ele fica impossibilitado de avaliar a sua consistência.
A tendência, que o provedor julga poder situar na forma despreocupada como se fazia jornalismo no imediato pós-25 de Abril, e que ficou como uma “conquista da revolução”, manifesta-se predominantemente no noticiário político. Tal é o caso da manchete “Obras públicas azedam relação entre Cavaco e José Sócrates”, de 6 de Julho, afirmação que no corpo da notícia não é sustentada em qualquer fonte, embora abundem as expressões “o PÚBLICO sabe que...”, “o PÚBLICO confirmou esta informação...” ou “o PÚBLICO apurou que...” O PÚBLICO pode saber muita coisa, o leitor é que fica a saber muito pouca.
Desta vez, o autor da notícia, Luciano Alvarez, teve a amabilidade de enviar ao provedor as suas fundamentações: “A notícia foi feita com base em informações de fontes que considero absolutamente credíveis, algumas delas independentes entre si e conhecedoras do tema em análise: as relações políticas e institucionais entre o Presidente da República e o primeiro-ministro. Porém, (...) aceitaram conversar comigo desde que não fossem citadas, nem sequer identificada a sua procedência. Claro que acho desejável a identificação de, pelo menos, a procedência da fonte, mas face à delicadeza do tema compreendi o pedido (...). Tendo em conta que as fontes eram, repito, absolutamente credíveis, e após conversa com o meu director, decidi assumir a informação que tinha, facto que só me responsabilizava mais a mim e ao meu jornal, uma vez que se a informação deste tema bastante delicado não fosse absolutamente correcta, como eu tinha a certeza que era, só eu e o meu jornal seríamos responsáveis por eventuais incorrecções. A informação (...) não só não foi questionada por ninguém, como, com o avançar dos dias e dos meses, viria a confirmar-se em absoluto”.
O provedor não sabe se as evidentes razões da deterioração do relacionamento entre Presidente e Governo radicam aqui ou em ocorrências mais recentes (Estatuto dos Açores, Lei do Divórcio), mas também não pretende contestar o que alega Luciano Alvarez a esse respeito: o que está em causa não é a veracidade das informações publicadas, mas sim a forma como se publicam, no estilo “eu sei que isto é assim e o público só tem que acreditar”.
Ao provedor também não parece que se tratasse de algo da transcendência do início da III Guerra Mundial, para obrigar a sigilo tão rigoroso e absoluto. Mas, se o jornalista avança agora essa explicação, não se vê por que razão não o poderia já ter feito na notícia – sempre era melhor que nada, embora insuficiente.
Tendo o assunto passado pelo director, o provedor ouviu também José Manuel Fernandes. Para além de considerações sobre técnica jornalística que, por falta de espaço, se remetem para o blogue do provedor, José Manuel Fernandes, revelando que o autor lhe indicou “quais eram as suas fontes” e que as considerou “fiáveis (algo que os factos, de resto, mais do que comprovaram)”, invoca, à semelhança do que faz Luciano Alvarez, uma disposição do Livro de Estilo admitindo esta prática: “Quando o jornalista está em condições de assumir a informação – isto é, quando a confirmou junto de várias fontes independentes entre si, embora todas tenham exigido o anonimato –, deverá noticiá-la no PÚBLICO sem necessidade de recorrer às habituais, retóricas e desacreditadas fórmulas do género ‘fonte digna de crédito’, ‘fonte segura’ ou ‘fonte próxima de’. As fontes, a sê-lo, devem estar sempre bem colocadas para falar sobre o assunto. (...) Um jornal bem informado não precisa de justificar permanentemente as suas notícias. Assume-as e responsabiliza-se por elas” (ponto 72 dos “Princípios e Normas de Conduta Profissional”). E conclui o director: “Enquanto o Livro de Estilo estiver em vigor é a nossa cartilha, mesmo que o possamos ldiscutir”.
O provedor já aqui discutiu (e questionou) esta norma bastante original, e acrescenta agora que lamenta ter ela resultado de uma revisão da “cartilha” em substituição de outra que entendia por mais adequada: ‘O sigilo deverá ser admitido apenas em último recurso e só quando não há outra forma de obter a informação ou a sua confirmação. O sigilo deve ser sempre justificado, de modo a não ser pretexto fácil de desresponsabilização do autor ou da fonte de informação. (...) Nesses casos, e só nesses casos, pode utilizar-se a fórmula ‘uma fonte do organismo X que solicitou o anonimato’”.
Uma última nota do director: “Nenhum jornal português trabalha com esta transparência no que respeita às regras que segue; e é mais fácil atribuir a fonte a uma entidade difusa não identificável do que assumi-la, mesmo podendo eu admitir que é preferível fazê-lo em certas circunstâncias para acrescentar credibilidade à informação. Mas se seguirmos a regra de que as fontes anónimas não servem para proteger o jornalista se este escrever algo errado, assumir a informação é mais exigente para quem escreve e assina, pois é o seu nome profissional, a sua credibilidade pessoal, que estão directamente em causa: o jornalista tenderá a ter mais cuidado antes de escrever. Foi este o caminho que escolhemos (...). Quando sentirmos que há melhores argumentos a favor de teses contrárias, alteraremos as nossas regras”. O provedor não perde pois a esperança num mundo melhor (pelo menos no PÚBLICO).
CAIXA:
Alarme genérico
A manchete de 3 de Agosto terá causado alarme generalizado: “Descida dos genéricos pode tornar mais caros muitos medicamentos”. O leitor Ricardo Charters d’Azevedo achou não ser bem assim: “A manchete (...) é finalmente desmentida, pois os cálculos não estão feitos e até pode ficar mais barato... segundo se noticia. Deu-se simplesmente voz a quem não concorda com os genéricos e procura inculcar a ideia de que a sua existência faz com que paguemos mais...” Na realidade, o título resultava apenas de uma especulação do presidente da Associação Nacional de Farmácias, João Cordeiro, desde sempre um feroz opositor dos genéricos. As explicações da autora da notícia, Alexandra Campos: “O comentário não tem fundamento, porque inicialmente, quando a redução do preço dos genéricos foi anunciada, havia mesmo o risco de alguns fármacos passarem a ficar mais caros para os doentes. E isto acontecia porque, ao descer o preço de referência (o do genérico mais caro do grupo dos medicamentos com a mesma substância activa), como a comparticipação do Estado é calculada com base neste indicador, os doentes passariam a pagar mais sempre que comprassem medicamentos de marca. Esse risco era de tal forma real que o Governo se viu obrigado, alguns dias depois, a mudar a forma de cálculo dos preços para evitar que alguns medicamentos ficassem mais caros. O problema foi esclarecido e ultrapassado (...) quando o Ministério da Saúde explicou que vai continuar a comparticipar os fármacos com base no preço actual dos genéricos, para evitar que os doentes paguem mais sempre que o médico receite medicamentos de marca”. Com esse resultado, terá feito sentido o alarme.
Publicada em 5 de Outubro de 2008
DOCUMENTAÇÂO COMPLEMENTAR
Carta do provedor ao jornalista Luciano Alvarez:
Como provedor do leitor do PÚBLICO, tenho-me debruçado sobre o problema da falta de referência a fontes das notícias, e é nesse sentido que gostava de o questionar sobre uma notícia da sua autoria. É uma notícia já um pouco antiga, mas o período de férias do Verão acabou por atrasar todo este processo de diálogo do provedor com os jornalistas. Penso porém que ainda vale a pena voltar a ela.
Trata-se da manchete de 6 de Julho: "Obras públicas azedam relação entre Cavaco e José Sócrates".
Acontece que em momento algum do texto se menciona qualquer fonte que tenha declarado o que se diz no título, apesar de todo o artigo ser bastante afirmativo no que respeita à questão de fundo. Do ponto de vista do leitor, é importante ter a percepção de que a informação está escorada em fontes credíveis, que lhe dão a solidez para se transformar em notícia e até ser manchete, mas tal nunca transparece do texto. Claro que poderemos estar perante fontes confidenciais, cujo anonimato tem de ser respeitado, mas também isso não é dito, limitando-se o texto às vagas referências "o PÚBLICO confirmou" ou "o PÚBLICO sabe".
Gostaria assim de lhe perguntar se considera adequada esta formulação do ponto de vista da técnica de construção da notícia.
Joaquim Vieira
Resposta de Luciano Alvarez:
A notícia que refere foi feita com base em informações de fontes que eu considero absolutamente credíveis, algumas delas independentes entre si e conhecedoras do tema em análise: as relações políticas e institucionais entre o Presidente da República e o primeiro-ministro.
Porém, as fontes por mim ouvidas e fundamentais para a elaboração da notícia aceitaram a conversar comigo desde que não fossem citadas, nem sequer identificada a sua procedência. Claro que acho desejável a identificação de, pelo menos, a procedência da fonte, mas face à delicadeza do tema compreendi o pedido feito pelas fontes.
Tendo em conta que as fontes eram, repito, absolutamente credíveis e após conversa com o meu director decidi assumir a informação que tinha, facto que só me responsabilizava mais a mim e ao meu jornal, uma vez que se a informação deste tema bastante delicado não fosse absolutamente correcta, como eu tinha a certeza que era, só eu e o meu jornal seriamos responsáveis por eventuais incorrecções.
A informação avançada pelo PÚBLICO a 6 de Julho ("Obras públicas azedam relação entre Cavaco e José Sócrates") não só não foi questionada por ninguém, como, com o avançar dos dias e dos meses, se viria a confirmar em absoluto.
A propósito cito o Livro de Estilo do PÚBLICO (página 33):
Princípios e Normas de Conduta Profissional
Ponto 72 - Quando o jornalista está em condições de assumir a informação – isto é, quando a confirmou junto de várias fontes independentes entre si, embora todas tenham exigido o anonimato – deverá noticiá-la no PÚBLICO sem necessidade de recorrer às habituais, retóricas e desacreditadas fórmulas do género “fonte digna de crédito”, “fonte segura” ou “fonte próxima de”. As fontes, a sê-lo, devem estar sempre bem colocadas para falar sobre o assunto. “Segundo as nossas fontes” é outra expressão banida das páginas do PÚBLICO. Um jornal bem informado não precisa de justificar permanentemente as suas notícias. Assume-as e responsabiliza-se por elas.
Luciano Alvarez
Resposta complementar do director do PÚBLICO:
Li a resposta do Luciano antes de ele ta enviar.
Discuti com ele a notícia entes de ele a publicar.
Sei que não concordas com o que está estabelecido no Livro de Estilo (e que resulta de uma evolução do primeiro Livro de Estilo, como a tua anterior polémica - ver também aqui - com o Vicente e o Zé Mário mostrou), e que resultou de um grande debate no interior da redacção.
Mas já não estou tão seguro que tenhas razão sobre o que dizes sobre a imprensa americana e inglesa. Quando estalou o escândalo Jason Blair, no New York Times, eles apertaram as regras no que se refere à citação de fontes anónimas. O caso do jornalista da BBC que noticiou o “apimentar” dos relatórios sobre o Iraque também suscitou uma polémica importante, tendo a comissão de inquérito da Câmara dos Lordes acabado por condenar o comportamento do jornalista por este, para proteger a fonte (que se suicidou, como te recordarás), a ter identificado de modo errado.
Com toda a franqueza, acho que este tema é infindável e muito dificilmente se chegará a um ponto em que todos possamos estar de acordo. Ainda ontem, por exemplo, li uma extraordinária reconstituição das negociações entre republicanos e democratas durante no último fim de semana no Wall Street Journal, uma peça para que contribuíram dez jornalistas (dez!) em que a regra foi a de contar o que se passou sem atribuir a fontes a não ser quando estas apareciam identificadas e as citações entre aspas.
E, quando foi a polémica do Jason Blair, o fundador do USA Today (que entretanto se tornou no jornal de maior circulação nos Estados Unidos), escreveu num artigo intitulado "Evil of journalism: Anonymous sources": "In 1982, when we founded USA TODAY, we effectively banned all anonymous sources. As competition for readers and viewers and listeners and prizes from peers has become greater, more and more publishers and editors and broadcast managers have relaxed their rules. More and more reporters have taken advantage of that environment. It's so simple. Most anonymous sources often tell more than they know. Reporters who are allowed to use such sources sometimes write more than they hear. Editors too often let them get away with it. Result: Fiction gets mixed with fact. The only way to win the war against this evil is for journalists at all levels to ban all anonymous sources. Until or unless we do, the public won't trust us, and we put the First Amendment in jeopardy."
Na altura, para evitar problemas como este, procurámos balancear o Livro de Estilo com normas como as introduzidas em 2004 no NYT, nomeadamente esta, citada num texto do seu provedor: “A fundamental part of the effort to tighten up the explanations for allowing anonymity was The New York Times's 2004 move to require that at least one editor be told the identity of any confidential source.”
Contudo isso não evitou todos os problemas e, na mesma coluna do mesmo, um leitor interrogava-se sobre a legitimidade da seguinte passagem de uma notícia publicada dias antes a propósito na nomeação do novo embaixador americano para as Nações Unidas: “Most of the reforms sought by the United States are well on their way to completion,' said a senior administration official, speaking anonymously to avoid undercutting the rationale for the Bolton appointment." A questão do leitor era a seguinte: "How absurd that The Times considers this an acceptable reason to use an anonymous source," he wrote. "It is the quote itself which undercuts the rationale for the appointment, whether the official is willing to own up to it or not."
No nosso Livro de Estilo evitamos este tipo de problemas estabelecendo que não se podem atribuir a fontes anónimas opiniões ou mesmo valorações de decisões.
Serve tudo isto para indicar que: a) o Luciano me indicou quais eram as suas fontes; b) considerei que eram fiáveis (algo que os factos, de resto, mais do que comprovaram); c) enquanto o Livro de Estilo estiver em vigor é a nossa cartilha, mesmo que o possamos discutir; d) se na anterior revisão do Livro de Estilo foram tidas em consideração várias recomendações de anteriores provedores, as tuas opiniões e recomendações deverão ser também tidas em conta na próxima revisão, que neste momento não tem data prevista apesar de a direcção e o conselho de redacção já terem recolhido várias sugestões que visam o seu aperfeiçoamento.
Por último, uma nota: nenhum jornal português trabalha com esta transparência no que respeita às regras que segue; e é mais fácil atribuir a fonte a uma entidade difusa não identificável do que assumi-la, mesmo podendo eu admitir que é preferível fazê-lo em certas circunstâncias para acrescentar credibilidade à informação. Mas se seguirmos a regra que as fontes anónimas não servem para proteger o jornalista se este escrever algo errado, a regra de assumir a informação é mais exigente para quem escreve e assina, pois é o seu nome profissional, a sua credibilidade pessoal, que estão directamente em causa, então o jornalista tenderá a ter mais cuidado antes de escrever. Foi este o caminho que escolhemos e são estas as regras que estão em vigor. Quando sentirmos que há melhores argumentos a favor de teses contrárias, alteraremos as nossas regras. Nesse sentido, aceitamos e apreciamos a tua opinião.
José Manuel Fernandes
sábado, 4 de outubro de 2008
O caso das notícias órfãs
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário