A anterior crónica do provedor, sobre a ausência de imputação de notícias a fontes de informação, suscitou reacções de quem teve e de quem tem grande relevo na produção deste jornal, pelo que vale a pena regressar hoje ao assunto, tanto mais que é ponto fulcral na prática do jornalismo.
Dois dos fundadores do PÚBLICO, Vicente Jorge Silva (VJS), seu primeiro director, e José Mário Costa (JMC), escreveram ao provedor acusando-o de, no texto de há uma semana, “distorcer por completo o que nessa matéria está estabelecido no Livro de Estilo (LE) do jornal”:
“Não é verdade que o LE ‘aconselhe’ a não imputação das fontes – antes pelo contrário! Nem é verdade, tão-pouco, que a ressalva aí referida sobre as condições excepcionais do sigilo profissional (é disso que se trata, e não de ‘norma’ nenhuma) ‘desobriga o jornalista de reproduzir com rigor as informações recolhidas junto das fontes, abrindo o caminho à especulação e à fantasia’.
Bastava a JV [o provedor] um pouco mais de rigor, não se limitando a truncar a frase citada, descontextualizando-a de todo o respectivo capítulo de 10 pormenorizadas páginas especialmente dedicadas ao tema das fontes e do sigilo profissional – seja na 1.ª edição do LE (da nossa inteira responsabilidade), seja na sua posterior e mais aligeirada (e confusa) versão actual. Numa e noutra, está prescrito, sem qualquer margem de ambiguidade: ‘Uma informação deve ser sempre atribuída à fonte de origem, identificada com a maior precisão possível – nome, idade e profissão, cargo ou função. O jornalista deve bater-se sempre por esse nível de identificação. A identificação – e a individualização – da fonte favorece a autoridade e a credibilidade da informação.’ E vem agora JV recomendar, ex cathedra, ‘a adopção [em próxima revisão do LE] das regras universalmente aceites quanto à invocação das fontes para fundamento das notícias’!...
O que JV escamoteia é que nessas ‘regras universalmente aceites’ há também as situações-limite do anonimato e do off-the-record. No que o LE ‘inovou’ – como depreciativamente lhe chama JV – foi na dissuasão do uso e do abuso das fontes anónimas, quantas vezes enganosas e perfeitamente fantasmas, sem o mínimo de rigor e seriedade, nomeadamente quando está em causa informação sigilosa.
É nestas condições excepcionais de preservação da confidencialidade de uma ou mais fontes (‘circunstâncias especiais justificam, por vezes, a não identificação das fontes de informação’), admitidas ‘apenas em último recurso e só quando não há outra forma de obter a informação’, que o LE advoga – e bem – a responsabilização acrescida do jornalista e do jornal. Na seguinte alínea, que JV deturpou: ‘Quando o jornalista está em condições de assumir a informação – i. e., quando a confirmou junto de fontes independentes entre si, embora todas tenham exigido o anonimato – deverá noticiá-la no PÚBLICO sem necessidade de recorrer às habituais, retóricas e desacreditadas fórmulas do género fonte digna de crédito, fonte segura ou fonte próxima de. As fontes, a sê-lo, devem estar sempre bem colocadas para falar sobre o assunto. Um jornal bem informado não precisa de justificar permanentemente as suas notícias. Assume-as e responsabiliza-se por elas.’
O que se passou com as seis notícias citadas por JV é que qualquer delas veio a revelar-se falsa ou de duvidosa fiabilidade. Ou seja, nunca deviam ter sido publicadas. Ou será que ganhariam um grama que fosse de credibilidade se os seus autores tivessem recorrido ao subterfúgio comum nestes casos (...). E os respectivos autores acaso ficariam mais desresponsabilizados aos olhos dos seus leitores?”
Por seu turno, o actual director do PÚBLICO remeteu também ao provedor alguns considerandos sobre o texto de domingo passado. Começa José Manuel Fernandes (JMF) pela “matéria de facto”:
“Pareceu-me incorrecto misturar uma infeliz manchete de há mais de três anos, formalmente desmentida pelo protagonista, com manchetes que não foram desmentidas, tendo podido sê-lo, ou foram mesmo confirmadas no conteúdo essencial da sua informação. A manchete de há três anos foi objecto de uma análise interna longa e profunda e, para além da Nota de Direcção que motivou, o Conselho de Redacção considerou-a um ‘erro indesculpável’ (...).
Quanto às notícias que suscitaram o comentário importa referir que as duas relativas às alterações de posição do primeiro-ministro eram verdadeiras, como resultou claro para quem acompanhou o debate quinzenal na AR realizado depois da sua publicação. A não identificação das fontes, mesmo de forma indirecta, não foi feita pois permitiria identificar a origem da informação. Eu próprio acompanhei o caso, fiz contactos e, como se clarifica na nova versão do LE, discuti com eles a identidade e fiabilidade das fontes que sustentaram a notícia. Também a notícia sobre o financiamento pela CGD de accionistas do BCP estava correcta, com excepção da confusão feita entre Armando Vara ter o pelouro do crédito e ter aprovado os empréstimos como membro da comissão de crédito do banco público. Foi uma falha num detalhe importante mas que não anula o título principal da notícia nem a sua relevância pública. Mais uma vez o jornal, em nome da protecção das suas fontes, não as identificou, nem indirectamente.”
JMF passa depois à “matéria de doutrina”, dizendo que releu as normas de jornais como Le Monde, The New York Times e The Washington Post e encontrou aí os mesmos princípios do LE, “com formulações e desenvolvimentos distintos”:
“A saber: o ideal é poder citar abertamente todas as fontes; quando isso não é possível, deve-se identificar a fonte o mais correctamente possível mas sem a denunciar; quando também isso não é possível, deve-se cruzar a informação com diferentes fontes, também anónimas ou formais, e assumir a informação quando se está suficientemente seguro de que é verdadeira. Nestes casos foi exactamente isso que sucedeu.”
Ao contrário do que estes comentários possam sugerir, a veracidade das manchetes analisadas na semana passada nunca foi posta em causa pelo provedor, como avisava logo no primeiro parágrafo. O que apenas se questionava era a forma como os jornalistas comunicavam a informação ao público, sem menção às fontes contactadas. Ao contrário do que consideram VJS e JMC, para o provedor o que está em questão não é pois a “falsa ou duvidosa fiabilidade” dessas manchetes (que não desmonstram). Quanto ao título de há três anos (que não era manchete), ele não foi analisado (nem podia sê-lo, por estar fora do alcance temporal do mandato do actual provedor), mas referido como exemplo extremo de um jornalismo que dispensa mencionar as suas fontes. O facto de o jornal ter feito a sua autocrítica não apaga esse texto da história do PÚBLICO.
As cinco manchetes analisadas pelo provedor baseavam-se em presumíveis fontes de natureza confidencial – como JMF agora confirma –, pelo que não se aplicava na circunstância o ponto do LE recomendando que “uma informação deve ser atribuída à fonte de origem, identificada com a maior precisão possível” (o “sempre” da citação desta norma feita por VJS e JMC não consta da versão em vigor). O que, à luz do LE, deixava como única opção possível, a esse respeito, a outra norma citada por VJS e JMC, autorizando o jornalista a não fazer qualquer menção às suas fontes “quando está em condições de assumir a informação”. O LE não faz depender este expediente de circunstâncias excepcionais (o que só é mencionado no subcapítulo seguinte do documento), tornando-o por isso um refúgio acessível e frequente dos jornalistas, como sabe quem lê o PÚBLICO.
Existe algo de esquizofrénico num LE que, por um lado, pede a identificação das fontes “com a maior precisão possível – nome, idade e profissão, cargo ou função” (prática aliás raramente seguida no PÚBLICO) e, por outro, apresenta como única alternativa a omissão total de referência a essas mesmas fontes. É aqui que o provedor entende haver ausência de regras universalmente aceites. As quais, apresentando desculpas a VJS e a JMC por nova atitude ex cathedra, resume do seguinte modo:
O jornalista deve revelar ao público o máximo de dados sobre a origem da informação que leva ao seu conhecimento. Quando as fontes reclamam o anonimato, o jornalista deve bater-se por situar da maneira mais rigorosa e aproximada possível a posição dessas fontes (inclusive negociando com elas a forma autorizada de o fazer). Uma fórmula como “fonte próxima de”, à falta de outra mais exacta, não é desacreditada, mas um modo legítimo de identificar a área onde foi recolhida a informação (ao contrário das expressões “o PÚBLICO sabe que”, “segundo o PÚBLICO apurou” ou “segundo informações apuradas pelo PÚBLICO”, que proliferam e que o LE não proíbe).
A protecção da confidencialidade das fontes não tem de ser considerada acto excepcional, mas sim método comum num jornalismo que se queira independente. Sem esse princípio, um órgão de informação não passaria de veículo para press-releases e declarações oficiais ou oficiosas. A confidencialidade não desobriga porém o jornalista de comunicar ao público que tipo de fontes contactou e se só falam sob anonimato (havendo algum mal nas fontes confidenciais, o problema não são elas, mas o crédito que o jornalista lhes possa dar). Como estabeleceu The Washington Post há quatro anos, ao definir normas internas sobre fontes e imputação de notícias, ”queremos que o nosso relato jornalístico seja tão transparente quanto possível aos olhos dos leitores, de forma a que eles possam saber como e onde obtivemos a informação.”
Publicada em 03 de Fevereiro de 2008
Documentação complementar:
Carta de Vicente Jorge Silva e José Mário Costa:
Na sua última crónica enquanto provedor do leitor (“Para onde foram as fontes?”, de 27/01/2008), Joaquim Vieira (JV) aproveitou cinco recentes manchetes do PÚBLICO e um outro título de 1.ª página mais antigo, deficientemente sustentados ou que vieram a revelar-se pura e simplesmente falsos, para distorcer por completo o que nessa matéria está estabelecido no Livro de Estilo do jornal, desde a sua fundação.
Não é verdade que o Livro de Estilo «aconselhe» a não imputação das fontes – antes pelo contrário! Nem é verdade, tão-pouco, que a ressalva aí referida sobre as condições excepcionais do sigilo profissional (é disso que se trata, e não de “norma” nenhuma) «desobriga o jornalista de reproduzir com rigor as informações recolhidas junto das fontes, abrindo o caminho à especulação e à fantasia».
Bastava a JV um pouco mais de rigor, não se limitando a truncar a frase citada, descontextualizando-a de todo o respectivo capítulo de 10 pormenorizadas páginas especialmente dedicadas ao tema das fontes e do sigilo profissional – seja na 1.ª edição do Livro de Estilo do PÚBLICO (da nossa inteira responsabilidade), seja na sua posterior e mais aligeirada (e confusa) versão actual.
Numa e noutra das duas edições do Livro de Estilo do PÚBLICO está lá prescrito, sem qualquer margem de ambiguidade: «Uma informação deve ser sempre atribuída à fonte de origem, identificada com a maior precisão possível – nome, idade e profissão, cargo ou função. O jornalista deve bater-se sempre por esse nível de identificação. A identificação – e a individualização – da fonte favorece a autoridade e a credibilidade da informação [págs. 69 e 32, respectivamente].»
E vem agora JV recomendar, ex cathedra, «a adopção [em próxima revisão do Livro de Estilo do PÚBLICO] das regras universalmente aceites quanto à invocação das fontes para fundamento das notícias»!...
O que JV escamoteia é que nessas «regras universalmente aceites» há também as situações-limite do anonimato e do off-the-record. No que o Livro de Estilo do PÚBLICO «inovou» – como depreciativamente lhe chama JV – foi na dissuasão do uso e do abuso das fontes anónimas, quantas vezes enganosas e perfeitamente fantasmas, sem o mínimo de rigor e seriedade, nomeadamente quando está em causa informação sigilosa.
É nestas condições excepcionais de preservação da confidencialidade de uma ou mais fontes («circunstâncias especiais justificam, por vezes, a não identificação das fontes de informação», págs. 71 e 33), admitidas «apenas em último recurso e só quando não há outra forma de obter a informação» [ibidem], que o Livro de Estilo advoga – e bem – a responsabilização acrescida do jornalista e do jornal. Na seguinte alínea, que JV deturpou:
«Quando o jornalista está em condições de assumir a informação – i. e., quando a confirmou junto de fontes independentes entre si, embora todas tenham exigido o anonimato – e noticiá-la no PÚBLICO, não tem necessidade de recorrer às habituais, retóricas e desacreditadas fórmulas do género “fonte digna de crédito”, “fonte segura” ou “fonte próxima de”. As fontes, a sê-lo, devem estar sempre bem colocadas para falar sobre o assunto. Um jornal bem informado não precisa de justificar permanentemente as suas notícias. Assume-as e responsabiliza-se por elas (…) [págs. 70-71 e 33].»
O que se passou com as seis notícias citadas por JV é que qualquer delas veio a revelar-se falsa ou de duvidosa fiabilidade. Ou seja, nunca deviam ter sido publicadas.
Ou será que elas ganhariam um grama que fosse de credibilidade, se os seus autores tivessem recorrido ao subterfúgio comum nestes casos (do tipo: “fonte digna de crédito”, “fonte segura”ou “fonte próxima de”)?
Já agora: e os respectivos autores acaso ficariam mais desresponsabilizados aos olhos dos seus leitores?
domingo, 3 de fevereiro de 2008
A excepção e a regra
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