domingo, 15 de novembro de 2009

Da transparência no jornalismo

Há por vezes peças jornalísticas onde parece querer-se pré-formatar o raciocínio do público

Assume a notícia, sem citar fontes, que o governo de Sócrates “é bem aceite” pelo seu “equi-
líbrio”





Na semana em que o vírus da berlusconização infectou o Estado português e o jornalismo parece a última trincheira da luta pela transparência do sistema democrático e da acção dos seus agentes, merece a pena dizer que o próprio jornalismo só reforça da sua credibilidade se também souber ser transparente perante os cidadãos.

Vem isto a propósito de um texto intitulado “Surpresa: uma equipa metade política e metade técnica”, acerca da formação por José Sócrates do actual elenco governativo, assinado pela jornalista Leonete Botelho na pág. 2 da edição do PÚBLICO de 23 de Outubro. O provedor tem por norma não retomar críticas já divulgadas no espaço público, mas abriu uma excepção por achar estimulante para o debate o comentário que nesse mesmo dia Gabriel Silva fez ao artigo de Leonete Botelho num post publicado no blogue Blasfémias. “Leonete Botelho (...) recorre à técnica dos ‘recados para alguém’. Para o leitor é que não é (...). ‘Enganaram-se os comentadores que apostavam que o novo Governo teria um cariz exclusivamente político’ – Quais comentadores? ‘Um executivo que é bem aceite por esse equilíbrio’ – Bem aceite por quem? ‘Alguns socialistas ouvidos pelo PÚBLICO não escondem a estupefacção’ – Quem? De que grupo? Escondem nome mas o recado já passou, certo? ‘Certo é que se trata de um ministério de relevo na hierarquia, mas sem grande exposição pública’ – Perdão? Isso quer dizer o quê? ‘…a escolha de Jorge Lacão é bem acolhida pela experiência que...’ – quem acolhe bem? ‘Mesmo assim, havia quem esperasse ver no cargo alguém...’ – Exacto, quem? ‘…ainda que haja quem critique baixinho a exclusão de socialistas ministeriáveis que dariam mais garantias de sucesso’ – Quem? ‘Baixinho’ não, está no artigo principal do jornal. Foi alguém que ficou de fora? Enfim. Recados e mais recados. Não parece ser isso que o consumidor pretende ler ao comprar o jornal”.

Não sendo o texto de Leonete Botelho encimado pelas palavras “análise” ou “comentário”, presumirá o leitor que se trata de matéria noticiosa. Por isso o provedor solicitou à autora uma explicação face às observações de Gabriel Silva. A jornalista começa por dizer ter achado o comentário “de uma enorme injustiça, uma vez que a notícia estava construída sobre depoimentos em on, com pessoas devidamente identificadas, e só lateralmente havia aquelas expressões retiradas do texto para construir o post e deturpar totalmente o conteúdo da peça”.

Leonete Botelho justifica depois o tom do seu artigo: “Como é hábito do PÚBLICO e prática dos jornais de referência, pretendia-se dar pistas de interpretação aos leitores sobre as escolhas feitas pelo primeiro-ministro, (...) que no dia seguinte já seriam conhecidas e já tinham sido escalpelizadas por televisões e rádios (...). Procuraram-se, entre as 18 e as 20 horas (tempo útil desde a divulgação dos nomes dos novos ministros e a dead-line para escrever), politólogos e políticos disponíveis para dar conta da sua apreciação sobre o novo governo. Focámo-nos sobretudo no PS, por supostamente ser onde se conheciam melhor as pessoas escolhidas, mas também para perceber até que ponto o partido de suporte do Governo se revia nas escolhas. Foi nesse contexto que foram ouvidos e aceitaram ser citados o politólogo André Freire e os socialistas Manuel Alegre e Fonseca Ferreira, (...) assim como Osvaldo Castro e Vitalino Canas, ambos deputados e com cargos de relevo na última legislatura (...).Outros contactos foram feitos mas as pessoas em causa não quiseram ser citadas (...). Estes contactos foram tidos em conta para o tom geral do texto, mas não para o seu enfoque principal nem para fazer citações de quem não quer ‘dar a cara’.”

A jornalista explica então, um a um, os destaques seleccionados por Gabriel Silva:

“‘Enganaram-se os comentadores’. Todos os que, desde a noite das eleições legislativas, escreveram (...) e falaram (...) sobre a necessidade de o novo governo ser hiperpolítico, no sentido de ser composto quase maioritariamente por quadros políticos preparados para o combate no Parlamento e na sociedade, combate que inevitavelmente espera um governo minoritário. Eram essas as expectativas criadas por analistas, politólogos, jornalistas, cidadãos, enfim, comentadores que – sim – se enganaram. As expectativas foram defraudadas. José Sócrates não correspondeu à análise política generalizada. Não consigo compreender a crítica do autor do post.

‘Um executivo que é bem aceite por esse equilíbrio.’ Basta ler o texto: todos os citados se referem ao equilíbrio entre políticos e técnicos. O mesmo em relação à ‘escolha de Jorge Lacão [ser] bem acolhida’ (...).

’Alguns socialistas ouvidos pelo PÚBLICO’; ‘Havia quem esperasse ver no cargo’; ‘haja quem critique baixinho’. Aqui de facto as fontes não são citadas. Repare-se: nenhum socialista citado faz críticas em on. Lanço mesmo o desafio de se procurar, para além de Alegre, um outro militante socialista com algum cargo político que tenha feito críticas em on a José Sócrates nos últimos seis meses, para não ir mais longe. Quer isto dizer que um jornalista deve fingir que não ouve as críticas que são feitas ao líder do PS? Quer isso dizer que um jornalista parlamentar, sobretudo quem acompanha determinado partido, seja ele qual for, deve ignorar todo o ambiente político que sabe existir nesse partido e não dar conta aos seus leitores dessa realidade? Se assim fosse, aí sim, estaria a mentir, porque passaria para os seus leitores a imagem de um partido unânime, onde não há crítica e onde ninguém tem opiniões e ideias diferentes do líder. O que, obviamente, não é verdade.

Ora, é precisamente em nome do rigor da informação, em nome da verdade, em nome dos deveres deontológicos do jornalista que a referência a fontes anónimas tem de ser um recurso à disposição desta profissão, depois de esgotadas todas as possibilidades de conseguir depoimentos ‘assinados’. Um ambiente psicológico como aquele de que se deu conta com aquelas expressões não pode ser aferido ouvindo uma única pessoa, nem duas ou três. Mas para quem acompanha um partido diariamente, para quem conversa todos os dias com muitos socialistas e conhece as sensibilidades e quem as representa, é possível com alguma rapidez aferir, com alguns telefonemas ou conversas, a ‘temperatura’ desse partido em determinado momento em relação a determinado facto. Foi o que se fez.

‘Certo é que se trata de um ministério de relevo na hierarquia, mas sem grande exposição pública’. Quer dizer simplesmente que o cargo de ministro da Defesa é o quarto da hierarquia do Governo, indiscutivelmente de relevo, mas que obviamente não tem a mesma exposição pública que o cargo de ministro dos Assuntos Parlamentares, que Augusto Santos Silva anteriormente ocupava (...). Que falta perceber? É preciso explicar que o Ministério da Defesa exige a quem o tutela um maior grau de discrição no tipo de intervenções que faz? Que lidar com os militares é diferente de lidar com os partidos da oposição?”

Por último, a resposta de Leonete Botelho à questão dos “recados”: “Não poderão chamar-se recados às incontáveis afirmações que fazem os políticos uns contra os outros (para falar só de política) em entrevistas, debates, notícias em que são citados? Não compreendo o preconceito, não compreendo onde o autor do post vê recados neste texto, como não compreendo o que esse consumidor pretende ler ao comprar o jornal”.

O que Leonete Botelho fez foi seguir uma prática mais ou menos institucionalizada no jornalismo português de dar por aquiridos consensos formados nas redacções e consagrados em letra de forma como o “politicamente correcto”. Nem todos os sublinhados feitos por Gabriel Silva são do mesmo teor. É uma realidade que houve comentadores a enganarem-se na antevisão do novo governo, que deverá haver socialistas críticos quanto a este executivo e que em tempo de paz a pasta da Defesa talvez seja menos exposta do que a dos Assuntos Parlamentares (o que porém Santos Silva não está a confirmar). Mas, quanto às restantes frases, Leonete Botelho não as atribui a quaisquer fontes, anónimas ou não anónimas (muito menos do PS), sim a uma espécie de pensamento único, socialmente consolidado. Será apenas uma questão de formulação, mas é dos tais casos em que forma e conteúdo estão indissoluvelmente ligados. Por esta forma, parece querer-se pré-formatar o raciocínio do leitor. O provedor não tem a pretensão de saber com rigor o que o consumidor pretende ler ao comprar o jornal, mas duvida que procure uma lavagem ao cérebro.


CAIXA:

Just for the record

Esta expressão inglesa equivale à nossa “para que conste”, o registo rigoroso de um facto, para memória futura. O método é especialmente importante num jornal de referência, que costuma ser visto como uma crónica fiel dos acontecimentos da sua época. Para que conste, o jornal deve ter a preocupação de comunicar factos confirmados ou, logo que verifique não ser o caso, fazer a sua correcção. O provedor escolheu este título devido ao caso suscitado pelo leitor Sérgio Nunes a propósito da seguinte passagem da crónica de Santana Castilho da passada quarta-feira: “Foram idênticas preocupações para não ferir a sensibilidade dos emigrados que terão levado os ingleses a retirarem dos livros escolares qualquer alusão ao holocausto". Escreve o leitor: “Esta ideia tem por base um persistente boato falso que o próprio governo britânico já desmentiu por diversas vezes. Parece ser um boato muito ‘cativante’, uma vez que já o vi mencionado por diversas vezes na imprensa nacional (...). Mesmo que o PÚBLICO não seja proactivo e preventivo na identificação destes erros factuais, parece-me fundamental a identificação e divulgação destas situações depois de encontradas”.

O provedor não possui qualquer jurisdição sobre textos de opinião, mas já esclareceu que se reserva o direito de chamar a atenção para a existência neles de erros factuais não corrigidos pelo jornal, como é o caso. Para que conste.

Publicada em 15 de Novembro de 2009

DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR:

Post de Gabriel Silva no blogue Blasfémias

Explicações da jornalista Leonete Botelho

Li essa “blasfémia” no dia em que foi publicada e achei de uma enorme injustiça, uma vez que a notícia estava construída sobre depoimentos em on, com pessoas devidamente identificadas, e só lateralmente havia aquelas expressões retiradas do texto para construir o post e deturpar totalmente o conteúdo da peça.

1. Trata-se da peça de abertura do destaque sobre o novo Governo, e como é hábito do PÚBLICO e prática dos jornais de referência, pretendia-se dar pistas de interpretação aos leitores sobre as escolhas feitas pelo primeiro-ministro, escolhas essas que no dia seguinte já seriam conhecidas e já tinham sido escalpelizadas pelas televisões e rádios durante várias horas. Procuraram-se, entre as 18 e as 20 horas (tempo útil desde a divulgação dos nomes dos novos ministros e a dead-line para escrever), politólogos e políticos disponíveis para dar conta da sua apreciação sobre o novo governo. Focámo-nos sobretudo no PS, por supostamente ser onde se conheciam melhor as pessoas escolhidas, mas também para perceber até que ponto o partido de suporte do Governo se revia nas escolhas.

2. Foi nesse contexto que foram ouvidos e aceitaram ser citados o politólogo André Freire e os socialistas Manuel Alegre e Fonseca Ferreira, que representam duas correntes de opinião dentro do partido, assim como Osvaldo Castro e Vitalino Canas, ambos deputados e com cargos de relevo na última legislatura: presidente da comissão parlamentar de Direitos, Liberdades e Garantias e porta-voz do PS, respectivamente.

3. Outros contactos foram feitos mas as pessoas em causa não quiseram ser citadas, porque se limitaram a fazer análises críticas sobre um ou outro aspecto da equipa governativa e não querem problemas no partido. Estes contactos foram tidos em conta para o tom geral do texto, mas não para o seu enfoque principal nem para fazer citações de quem não quer ‘dar a cara’. Mas ajudaram a perceber que a opção de José Sócrates, ao abrir o Governo a independentes em detrimento dos quadros políticos do partido, não é pacífica no PS. O que, aliás, deu origem a um outro texto, publicado hoje (sábado 24) sob o título: “José Sócrates, o pragmático, passou ao lado das sensibilidades do PS nas escolhas”.

4. Passemos agora às ‘críticas’ do Blasfémias:

i. “Enganaram-se os comentadores”. Quais? Todos os que, desde a noite das eleições legislativas, escreveram nos jornais e nos blogues e redes sociais, e falaram nas rádios e nas televisões, sobre a necessidade de o novo governo ser hiperpolítico, no sentido de ser composto quase maioritariamente por quadros políticos preparados para o combate no Parlamento e na sociedade, combate que inevitavelmente espera um governo minoritário. Eram essas as expectativas criadas por analistas, politólogos, jornalistas, cidadãos, enfim, comentadores que – sim – se enganaram. As expectativas foram defraudadas. José Sócrates não correspondeu à análise política generalizada. Não consigo compreender a crítica do autor do post.

ii. “Um executivo que é bem aceite por esse equilíbrio – por quem?” – Basta ler o texto: todos os citados se referem ao equilíbrio entre políticos e técnicos. O mesmo em relação à “escolha de Jorge Lacão [ser] bem acolhida”: é-o pelos citados, claro, basta ler o texto.

iii. “Alguns socialistas ouvidos pelo PÚBLICO”; “Havia quem esperasse ver no cargo”; “haja quem critique baixinho”: aqui de facto as fontes não são citadas. Repare-se: nenhum socialista citado faz críticas em on. Lanço mesmo o desafio de se procurar, para além de Manuel Alegre, um outro militante socialista com algum cargo político que tenha feito críticas em on a José Sócrates nos últimos seis meses, para não ir mais longe. Quer isto dizer que um jornalista deve fingir que não ouve as críticas que são feitas ao líder do PS? Quer isso dizer que um jornalista parlamentar, sobretudo quem acompanha determinado partido, seja ele qual for, deve ignorar todo o ambiente político que sabe existir nesse partido e não dar conta aos seus leitores dessa realidade? Se assim fosse, aí sim, estaria a mentir, porque passaria para os seus leitores a imagem de um partido unânime, onde não há crítica e onde ninguém tem opiniões e ideias diferentes do líder. O que, obviamente, não é verdade.

iv. Ora, é precisamente em nome do rigor da informação, em nome da verdade, em nome dos deveres deontológicos do jornalista que a referência a fontes anónimas tem de ser um recurso à disposição desta profissão, depois de esgotadas todas as possibilidades de conseguir depoimentos ‘assinados’. Um ambiente psicológico como aquele de que se deu conta com aquelas expressões não pode ser aferido ouvindo uma única pessoa, nem duas ou três. Mas para quem acompanha um partido diariamente, para quem conversa todos os dias com muitos socialistas e conhece as sensibilidades e quem as representa, é possível com alguma rapidez aferir, com alguns telefonemas ou conversas, a “temperatura” desse partido em determinado momento em relação a um determinado facto. Foi o que se fez.

v. “Certo é que se trata de um ministério de relevo na hierarquia, mas sem grande exposição pública” – Quer dizer simplesmente que o cargo de ministro da Defesa é o quarto da hierarquia do Governo, indiscutivelmente de relevo, mas que obviamente não tem a mesma exposição pública que o cargo de ministro dos Assuntos Parlamentares, que Augusto Santos Silva anteriormente ocupava e que o colocava no centro da exposição parlamentar e pública, pelas intervenções que fazia enquanto tal. Que falta perceber? É preciso explicar que o Ministério da Defesa exige a quem o tutela um maior grau de discrição no tipo de intervenções que faz? Que lidar com os militares é diferente de lidar com os partidos da oposição?

vi. “Enfim. Recados e mais recados. Não parece ser isso que o consumidor pretende ler ao comprar o jornal” – Há de facto um recado na peça em causa e está devidamente assinalado como tal e em on: É o “aviso à navegação” feito por Fonseca Ferreira no fim do artigo. Sobre os “recados”: não poderão chamar-se recados às incontáveis afirmações que fazem os políticos uns contra os outros (para falar só de política) em entrevistas, debates, notícias em que são citados? Não compreendo o preconceito, não compreendo onde o autor do post vê recados neste texto, como não compreendo o que esse consumidor pretende ler ao comprar o jornal.

Leonete Botelho

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