domingo, 22 de novembro de 2009

Que farei eu com estas escutas?

A liberdade de imprensa não está apenas sujeita ao articulado legal, já que se trata também de uma questão de civilização

Os jorna-
listas de-
vem poder publicar quando o interesse público pesa mais do que o direito à privacidade



Tem-se equacionado que atitude deve um jornalista assumir se tiver acesso às escutas das ligações telefónicas entre Armando Vara e José Sócrates realizadas pelas autoridades judiciais no âmbito da investigação do processo “Face Oculta”. O provedor gostaria de interromper a sua análise de casos pretéritos do PÚBLICO para se debruçar sobre esta circunstância eventualmente vindoura, neste ou noutro órgão de informação.

O ambiente é de enorme pressão psicológica sobre os jornalistas no sentido de que devem abster-se de qualquer referência ao conteúdo das escutas, porquanto: a) constituem intromissão na vida privada dos protagonistas; b) o titular de um órgão de soberania deve ter direitos de confidencialidade superiores aos de outros cidadãos; c) trata-se de uma violação do segredo de justiça e de fugas de informação cirurgicamente dirigidas; d) as superiores instâncias judiciais declararam a invalidade e até a destruição dessas gravações, que terão sido efectuadas ilegalmente por carecerem da adequada caução judicial; e) e, para reforçar, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República aprovou na semana que findou um parecer impedindo o acesso dos jornalistas às escutas em processos judiciais. Sucessivos políticos (sobretudo da área governamental, mas não só), comentadores e até especialistas em ética jornalística têm antecipado a catástrofe na revelação das escutas a Vara e Sócrates, como se representasse a destruição do Estado de direito. Nessa argumentação, questões processuais como as garantias dos arguidos ou a preservação do segredo de justiça sobrelevam o apuramento da corrupção que parece minar o Estado, do tráfico de influências entre políticos e empresários ou da apropriação perversa dos negócios públicos para enriquecimento particular ou partidário – matérias apresentadas mesmo como “comezinhas”. A mensagem subliminar dos políticos aos jornalistas é clara: portem-se com juízo, se não caímos em cima de vocês com todos os meios ao nosso dispor (e, ao que parece, retirando também a colocação de publicidade estatal). O respeitinho, na nossa sociedade, ainda continua a ser uma coisa muito bonita.

Mas afinal que têm os cidadãos direito a saber? A liberdade de imprensa (no sentido lato de liberdade de informação) está definida, na sua amplitude e nos seus limites, por uma série de articulados legais que variam de país para país, mas antes disso trata-se de um conceito filosófico que representa uma aquisição da nossa civilização. Nos casos-limite em que se julga eventuais abusos de liberdade de imprensa, a margem de entendimento e decisão dos magistrados é extremamente ampla e subjectiva, e muitas vezes nem sequer consensual entre eles. A jurisprudência interna está mais vocacionada para fazer uma leitura literal da letra da lei, mas existe hoje a instância supranacional do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que atribui ao conceito a categoria filosófica atrás referida, tendo já revogado diversas sentenças dos tribunais portugueses tomadas contra jornalistas ou outros cidadãos fazendo uso da sua liberdade de expressão.

Isto não obsta a que a classe política em Portugal, desde que disponha do poder necessário, se sinta atraída por tomar medidas limitativas da liberdade de informação. Basta analisar os estatutos da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovados em sede parlamentar pelos partidos do chamado arco governativo (PS, PSD e CDS/PP). E o PS foi particularmente agressivo neste campo quando dispôs da anterior maioria absoluta. Sem fazer um processo de intenções às restantes forças parlamentares (BE e PCP), o elenco de formações políticas ou regimes além-fronteiras que apoiam ou a que habitualmente estão ligados não permite concluir que possuam melhor entendimento deste valor.

É claro que a liberdade de imprensa não é absoluta, total e ilimitada. Na sua decisão de informar, o jornalista tem de colocar muitas vezes num prato da balança os direitos individuais (sobretudo o direito à reputação e ao bom nome e o direito à preservação da intimidade da vida privada) e no outro o direito colectivo ao conhecimento das matérias de interesse público. A opção final terá de ser sempre do próprio jornalista, já que não pode consultar um tribunal para cada notícia que publica, e é óbvio que por vezes envolve um risco. Mas quem não quer correr riscos no jornalismo deve mudar de profissão. Ao longo da sua carreira de jornalista, este provedor foi processado judicialmente quase duas dezenas de vezes (inclusive por violação do segredo de justiça), mas nunca foi condenado, sequer em primeira instância. Rotina profissional, apenas.

Recuemos no tempo, até 1971. Em 13 de Junho desse ano, o diário norte-americano The New York Times começou a publicar uma série de artigos dando a conhecer o conteúdo de um estudo confidencial do Departamento de Defesa norte-americano sobre o envolvimento dos EUA na guerra da Indochina, com a revelação de estratégias bélicas antes mantidas secretas. Para lá do escândalo político que se desencadeou, falou-se em “traição nacional”, já que os americanos continuavam envolvidos em combates no Vietname. Os próprios advogados do New York Times estavam divididos sobre se o jornal deveria ou não divulgar documentos com o carimbo “top-secret” e tanto o Presidente (Richard Nixon) como o Attorney General (um misto de ministro da Justiça e Procurador Geral da República) tentaram debalde convencer o diário a suspender a saída dos artigos, para depois obterem uma injunção judicial forçando a sua interrupção, que foi acatada. A cena repetiu-se logo a seguir com The Washington Post, que porém não obedeceu à ordem de suspensão emitida pelo tribunal. A querela dos dois jornais subiu à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, que em 30 de Junho, por maioria (6-3), deliberou que as injunções judiciais eram inconstitucionais, já que constituíam uma limitação à liberdade de imprensa. (Mais do que o Watergate, que ocorreria pouco tempo depois, o caso dos “documentos do Pentágono” é considerado o acto fundador do moderno jornalismo de investigação).

Em nome do direito dos cidadãos a serem informados, o jornalismo pode revestir-se por vezes de aspectos que têm a ver com a desobediência civil. Voltando às escutas de Sócrates, os jornalistas, na opinião do provedor, só teriam uma coisa a fazer: destacar, se existem, os aspectos em que, no seu entender, o interesse público pesa mais do que a privacidade dos protagonistas, e trazê-los ao conhecimento da opinião pública. A mensagem aos políticos devia ser igualmente clara: esta é parte da verdade sobre a governação, que a todos os cidadãos diz respeito e que por isso têm o direito de conhecer; se quiserem, processem – veremos quem ganha.

CAIXA:

A favor do pluralismo

Assumindo a condição de assessor da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, dependente do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), José Mariano Gago, escreve João Palhoto Matos, “meramente a título pessoal”, sobre uma nota assinada pelas jornalistas Bárbara Wong e Teresa Firmino, na pág. 7 da edição de 1 de Novembro, acerca do novo mandato governamental de Gago: “São citadas opiniões de duas pessoas: José (sic, presumo que de facto João) Cunha Serra, sindicalista bem conhecido, e Frederico Carvalho, investigador aposentado (...), que expõem opiniões sobre o trabalho futuro do MCTES. Opiniões estimáveis, quer se concorde ou não (...), e não questiono a sua relevância per se. O que me parece espantoso é que não há outras, e um minuto de pesquisa mostra que são duas pessoas nitidamente conotadas com as posições políticas do PCP nas áreas do Ensino Superior e da Ciência respectivamente. (...) Como é que (...) escolheram estas duas opiniões como exemplificativas? Há aqui objectividade? (...) É justificável que opiniões apareçam em forma que aparenta não ser uma citação? O resultado parece-me demasiado enviesado, e de forma que ilude informação para o leitor”.

O provedor, que se absteve de pedir cartão partidário aos entrevistados, solicitou explicações às duas jornalistas, sendo que cada uma escolhera uma fonte. Sobre Cunha Serra respondeu Bárbara Wong, que também diz ignorar a sua filiação política ou sequer se a possui: “Não escolhi uma pessoa ao acaso. É dirigente da Federação Nacional dos Professores, defende os interesses da sua classe. Mas é também um homem (...) que já citei, noutras ocasiões, a reconhecer o bom trabalho de Mariano Gago. É natural que João Palhoto Matos não concorde; [...] verifico que o seu endereço de email é do próprio ministério. O texto expressa a opinião de João Cunha Serra, ou seja, da estrutura sindical que representa (...). Quem acompanha a área (...) sabe que é também a opinião do Sindicato Nacional do Ensino Superior, e, no que diz respeito ao financiamento, o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas também assina por baixo – aliás, no texto faço referência aos reitores”. E acrescenta Teresa Firmino: “O investigador que surge a comentar a área da ciência reflecte há muitos anos sobre o sistema científico português (...). Este é, aliás, o tipo de artigo em que quem é ouvido expressa a sua opinião e, nesse sentido, a pessoa está identificada”.

Embora seja desejável o pluralismo numa situação destas, o provedor acha que a circunstância de as jornalistas terem, ao que afirmam, actuado autonomamente e não se conhecer identificação política clara dos dois intervenientes torna compreensível a sua argumentação.

Publicada em 22 de Novembro de 2009

DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR:

Carta do leitor João Palhoto Matos

A minha assinatura abaixo deve dar a informação de que não sou parte neutra no assunto que venho a expor (poderia ter colocado outra que me identifica como professor no IST, que seria igualmente verdadeira). No entanto esta mensagem é enviada meramente a título pessoal e de nenhuma forma envolve a instituição em que me encontro a trabalhar de momento. Deixei ficar a assinatura exactamente para contrapor à prática que questiono.

O PÚBLICO de 1 de Novembro apresenta a partir da página 7 um artigo, "Dezasseis Ministros à Procura de um Governo". Há um pedaço do artigo dedicado ao ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior [MCTES], Mariano Gago. São citadas opiniões de duas pessoas: José (sic, presumo que de facto João) Cunha Serra, sindicalista bem conhecido, e Frederico Carvalho, investigador aposentado do ITN [Instituto de Tecnologia Nuclear], que expõem opiniões sobre o trabalho futuro do MCTES.

Opiniões estimáveis quer se concorde ou não com elas (eu não concordo, mas pouco vem ao caso) e não questiono a sua relevância per se. O que me parece espantoso é que não há outras, e um minuto de pesquisa mostra que são duas pessoas nitidamente conotadas com as posições políticas do PCP nas áreas do Ensino Superior e da Ciência, respectivamente. As perguntas: como é que B.W. e T.F., que assinam o pedaço da peça, escolheram estas duas opiniões como exemplificativas? Há aqui objectividade? Qual seria a boa prática numa notícia como esta? É justificável que opiniões apareçam em forma que aparenta não ser uma citação?

O resultado parece-me demasiado enviesado, e de forma que ilude informação para o leitor, para o tipo de artigo em causa.

João Palhoto Matos
Assessor da Direcção para a área de informática Fundação para a Ciência e a Tecnologia

Explicação da jornalista Bárbara Wong

Eu tenho a "pasta" do ensino superior e a Teresa tem a da ciência. É por essa razão que assinamos o texto em conjunto, uma vez que o que nos foi pedido pelo editor do Portugal Tiago Luz Pedro foi o seguinte:

"Amigos,
O destaque de 1 de Novembro será uma antecipação do que se conseguir reunir até lá do programa de Governo e das estratégias de governação que nos esperam nos próximos anos. O essencial será feito pela Política, mas pedem-nos textos sectoriais (ouvindo especialistas) que avaliem ministério a ministério os desafios/prioridades de cada um e as medidas previstas para concretizá-las. É importante que todos os textos reflictam também se o respectivo ministério ganha ou perde importância política na estrutura do Governo (ex: o Ambiente perdeu os fundos estruturais para a Economia, logo...). "

O pedido também apontava o tamanho de cada texto: dois mil caracteres. Pelo menos de quatro em quatro anos, eu e a Teresa Firmino fazemos estes textos em conjunto. Por isso, dividimos irmãmente os caracteres, mil para cada.

Portanto, eu não escolhi uma pessoa ao acaso. O que eu fiz foi ouvir uma pessoa que está identificada: é um dirigente da Federação Nacional dos Professores, portanto, defende os interesses da sua classe. Mas é também um homem que está há muito neste sector e que o conhece bem e que já citei, noutras ocasiões, a reconhecer o bom trabalho de Mariano Gago.

É natural que o professor João Palhoto (que não conheço) não concorde, como haverá milhares de pessoas que podem não concordar. Quando digo que é natural é porque, apesar de não conhecer o professor em questão, verifico que o seu endereço de email é do próprio ministério. O texto expressa a opinião de João Cunha Serra, ou seja, da estrutura sindical que representa e que vem bem identificada. Quem acompanha a área como eu sabe que é também a opinião do Sindicato Nacional do Ensino Superior e, no que diz respeito ao financiamento, o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas também assina por baixo - aliás, no texto faço referência aos reitores.

Segundo estas três organizações, os últimos quatro anos não foram fáceis para o ensino superior porque os orçamentos de universidades e politécnicos foram constantemente cortados. Além disso, o ónus do pagamento da caixa geral de aposentações (11 por cento) foi passado para essas mesmas instituições. Por isso se fala tanto de sub-financiamento deste sistema, ele é real. Na anterior legislatura, o Governo apostou forte na ciência em detrimento do ensino superior, e isso é reconhecido por todos, mesmo pelo próprio primeiro-ministro, que se reuniu com os reitores e presidentes dos politécnicos e agradeceu-lhes o esforço feito.

Tudo isto já foi escrito no PÚBLICO.

Bárbara Wong

Explicação da jornalista Teresa Firmino

Queria apenas acrescentar ao que a Bárbara Wong escreveu o seguinte: o investigador que surge a comentar a área da ciência reflecte há muitos anos sobre o sistema científico português, razão por que foi ouvido agora, tal como já aconteceu para outros artigos no passado. Este é, aliás, o tipo de artigo em que quem é ouvido expressa a sua opinião, e, nesse sentido, a pessoa está identificada.

Teresa Firmino

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