Por que razão é “ridículo” usar a fórmula “junto de fonte próxima...”, se de facto é disso que se trata?
Será frustrante para quem lê permanecer na ignorância acerca de onde emana a informação: se de pessoas de carne e osso, se do tarot da astróloga Maya (colaboradora do jornal) ou se em “escrita automática” resultante de uma comunicação espiritual em mesa de pé-de-galo.
O provedor regressa ao delicado tema das fontes, prometendo desde já não querer fazer disso cruzada. Cruzam-se porém ocorrências à volta do assunto, impedindo o seu esgotamento. Tal como há duas semanas, acontece que mais uma vez as matérias em análise são da responsabilidade da jornalista São José Almeida. Mera coincidência: o provedor, que tem por São José Almeida a elevada consideração que dedica a toda a redacção do PÚBLICO, reitera que esta é sobretudo uma prática arreigada no jornalismo português, não especificamente neste ou naquele profissional ou órgão de informação.
Atentemos à manchete da passada quarta-feira, 22 de Outubro: “Cavaco promulgou Lei do Divórcio para evitar guerra com o Governo”. O provedor leu a notícia curioso por saber qual a sua origem. Seria uma declaração do Presidente ao jornal (como outra recente)? Seriam fontes de Belém a revelarem as reais motivações presidenciais? Ou outra fonte bem informada capaz de dar credibilidade à manchete? Não se referia, porém, qualquer fonte, nem sequer se usando a (insatisfatória) fórmula “o PÚBLICO soube”. Julga o provedor que será frustrante para quem lê permanecer na ignorância acerca de onde emana a informação: se de pessoas de carne e osso, se do tarot da astróloga Maya (colaboradora do jornal) ou se em “escrita automática” resultante de uma comunicação espiritual em mesa de pé-de-galo.
Apenas se adiantava que “a preocupação do Presidente em não prolongar uma guerra estéril, que acabaria com a sua derrota explícita, foi confirmada ontem pela reacção do PS [à promulgação]”, mas, não navegando o partido governamental propriamente em águas cavaquistas, o provedor ficou sem perceber como uma atitude dos socialistas poderia confirmar uma intenção de Cavaco. Pensou assim que, afinal, o texto poderia não ser uma notícia, mas sim um artigo de análise política – o que seria inteiramente legítimo, faltando contudo identificá-lo como tal perante os leitores.
Foi essa a questão colocada pelo provedor a São José Almeida, que esclareceu: “A noticia é baseada em fontes, e por isso é noticia, não análise minha. A fórmula de a notícia ser omissa quanto à fonte é permitida pelo Livro de Estilo do PÚBLICO. O jornalista e o jornal assumem a informação. Aliás, essa prática é a do PÚBLICO desde a sua fundação. Ridículo seria usar fórmulas como ‘junto de fonte próxima...’.” O provedor só não percebe por que razão seria ridículo usar tal fórmula, se de facto foi disso que se tratou (o que não se infere forçosamente da resposta da jornalista). O leitor ficaria muito melhor informado sobre a natureza da informação e sobre o próprio carácter noticioso do artigo. Quanto ao resto, não valerá a pena comentar, pois já antes foi objecto de análise.
O segundo caso relaciona-se com a notícia “Ex-autarca de Setúbal e Palmela deixa o PCP”, publicada na pág. 6 da edição de 30 de Setembro e baseada em “informações recolhidas pelo PÚBLICO”. A questão aqui tem também a ver com o contexto em que a notícia é apresentada, segundo reclamação (a ler na íntegra no blogue do provedor) de Paulo Anjos, assessor de imprensa da Câmara Municipal de Setúbal (CMS):
“O problema surge quando a jornalista escreve: ‘A decisão de afastar [Carlos de] Sousa da CMS foi tomada pelo PCP depois de ter sido público o resultado de uma investigação da Inspecção-Geral da Administração do Território (IGAT). Esse inquérito relacionava Carlos de Sousa com a prática criminal de reformas antecipadas de funcionários da autarquia. Quando, em 2001, o PCP decidiu retirar Carlos de Sousa da presidência da CM de Palmela e candidatá-lo a Setúbal (...), a CMS está tecnicamente falida. É então aprovado um programa de recuperação financeira que passava pela redução de despesas com pessoal. É posto em prática um esquema de os funcionários serem reformados compulsivamente, após processo disciplinar, o qual era instaurado por excesso de faltas’.”
Alega Paulo Anjos: “Nunca o PCP (...) associou a saída de Carlos de Sousa (...) à questão do inquérito das aposentações compulsivas. É normal que a jornalista tenha fontes que lhe digam o contrário, mas na notícia em causa não é claro se as tem ou se se limitou a reproduzir o que se lembra do caso. (...) Se a jornalista tivesse pesquisado no seu próprio jornal teria ficado a saber (...) que o processo no Ministério Público originado pelo inquérito da IGAT (...) foi arquivado em Setembro de 2007. Referir esta informação era o mínimo que poderia ter feito para não pôr em causa, mais uma vez, a reputação do autarca Carlos de Sousa e dos que com ele trabalharam. São José Almeida preferiu a via mais espalhafatosa para dar maior visibilidade à notícia”.
Para este leitor há ainda “o pior”: “O pior é mesmo [São José Almeida] ter dado ouvidos a uma especulação sobre a possibilidade de Carlos de Sousa poder ser candidato independente à CMS, apesar de afirmar que ‘apurou’ que o antigo presidente não ‘tenciona voltar à actividade autárquica’. É que, mesmo que (...) o desejasse, tal seria, do ponto de vista legal, impossível. De acordo com a lei da limitação de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais, (...) ‘no caso de renúncia ao mandato, os titulares (...) não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia’. Nesta mesma lei é imposto um limite ao número de mandatos consecutivos, disposição que também afectaria Carlos de Sousa.”
Conclui assim Paulo Anjos: “Mesmo com a informação de que Carlos de Sousa não tenciona candidatar-se, a jornalista preferiu dar ouvidos a fontes que se revelam pouco fiáveis. Se o fossem, não teriam ensaiado esta manobra de lançar a confusão para ver o que dá. Do ponto de vista jornalístico, restam-me algumas dúvidas:
- Deve o jornal dar ouvidos a especulações sem qualquer fundamento, sem cuidar de cruzar a informação e confirmá-la sem margem para dúvidas, e ainda assim publicá-las?
- Deve o jornal publicar notícias em que não há a preocupação de fazer um enquadramento minimamente correcto dos antecedentes? (...).
- A saída de Carlos de Sousa do PCP é, sem qualquer dúvida, uma notícia relevante. Mas será que é necessário apimentar a coisa com meia dúzia de factos extraordinários, mas incorrectos, para chamar a atenção do leitor incauto?”
Parecendo-lhe haver pertinência na reclamação, o provedor solicitou um comentário a São José Almeida, que respondeu: “Penso que não devo dizer muito sobre a carta em apreço. Ela fala por si. É obvio que me baseei nas notícias publicadas à época para contextualizar a informação. Assim como escrevi sobre informações reais de um movimento real de eventual apoio a uma recandidatura de Carlos de Sousa. A questão de a lei não permitir a candidatura não impede que haja pessoas que o desejem. Os jornais informam sobre o que acontece e não apenas sobre o que idealmente, segundo a lei, deveria acontecer. Poderia ter posto a informação de que pela lei quem renuncia não se pode candidatar a seguir; não me pareceu relevante valorizar isso, no pouquíssimo espaço que tinha, quando estava na posse de informações de que tal candidatura não existiria mesmo que legalmente fosse autorizada, por indisponibilidade do próprio Carlos de Sousa” Num segundo contacto com o provedor, São José Almeida complementou ainda: “Pode ter sido uma opção errada ou não ter sido a melhor opção, mas pareceu-me correcto privilegiar a actualidade e o que era o objecto da noticia, o senhor Carlos de Sousa.”
Sobre a questão das fontes, o provedor julga não dever adiantar mais ao que já expôs. Quanto ao resto, há que reconhecer que a notícia se encontra amputada de dois elementos de enquadramento fulcrais para a sua correcta compreensão por parte do leitor: por um lado, que a recandidatura de Carlos de Sousa é impossível à face da lei (sendo assim insólito haver um movimento nesse sentido); por outro, que a suspeita de “prática criminal” impendendo sobre o ex-presidente da CMS já não existia, em virtude do arquivamento do respectivo processo (questão essencial na medida em que afecta a reputação do visado).
Caixa:
Promoções vs. jornalismo?
O leitor Manuel Martins preferia ver matéria jornalística nas páginas que o PÚBLICO dedica à promoção dos produtos associados: “Que um jornal tenha produtos associados que precise de promover para melhor os vender, é um direito legítimo que lhe assiste. Mas que o PÚBLICO – como aconteceu por exemplo na edição de 21 de Outubro – ocupe quatro páginas completas (além de mais alguns pequenos anúncios ‘tapa-buracos’ noutras páginas) com essas promoções (por exemplo de livros que têm a sua chancela), já me parece um pouco exagerado. Não seria mais correcto que algumas dessas quatro páginas fossem preenchidas com notícias?”
O provedor perguntou ao director do PÚBLICO se essas páginas “roubam” espaço inicialmente destinado a conteúdos editoriais. José Manuel Fernandes explica que “há um número ideal de páginas editoriais estabelecido para cada edição, cada caderno e cada suplemento; é o número de páginas de referência, que é discutido entre a direcção editorial e a administração”. Só depois é que “a esse número de páginas são acrescentadas as páginas de publicidade e as páginas de promoções”. Então, o número de páginas a imprimir é afinado, pois a rotativa só dá ‘saltos’ de oito em oito páginas”. Em conclusão: “Significa isto que o espaço reservado para a promoção de produtos associados ao jornal não é ‘ganho’ à custa do espaço editorial, o que não impede que por vezes tenhamos de fazer compromissos devido às limitações impostas pelas características da rotativa. Nalguns dias com mais noticiário é a área das promoções que cede espaço, noutros é o contrário”.
Para quem se interessa pelo tema, ainda uma informação adicional: “Este tipo de modelo (...) é semelhante ao adoptado por jornais como El País e La Reppublica, tendo sido estabelecido no tempo em que aqueles dois diários tiveram uma participação no capital do PÚBLICO e estavam representados nos órgãos de gestão e supervisão”.
Publicada em 26 de Outubro de 2008
DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR:
Carta de Paulo Anjos:
Em primeiro lugar, quero dar-lhe conta de que sou, desde 2002, assessor de imprensa da Câmara Municipal de Setúbal. Forneço, à partida, esta informação a título de declaração de interesses na matéria que me leva a escrever-lhe. Acrescento que não fui mandatado por quem quer que seja para apresentar esta queixa, se não por mim próprio e pela vontade de não deixar passar em claro algo que me parece profundamente errado sob vários pontos de vista, em especial do ponto de vista jornalístico.
Publicou o PÚBLICO, na edição de 30 de Setembro, uma notícia assinada por São José Almeida na qual se relata que Carlos de Sousa abandonou a militância no PCP, facto implicitamente confirmado pelo próprio quando se afirma na notícia que Carlos de Sousa "não aceitou falar do assunto".
Até aqui, nada a assinalar.
O problema surge quando a jornalista escreve que "a decisão de afastar Sousa da Câmara de Setúbal foi tomada pelo PCP depois de ter sido público o resultado de uma investigação da Inspecção-Geral da Administração do Território (IGAT). Esse inquérito relacionava Carlos Sousa com a prática criminal de reformas antecipadas de funcionários da autarquia. Quando, em 2001, o PCP decidiu retirar Carlos Sousa da presidência da Câmara de Palmela e candidatá-lo a Setúbal, recuperando o município que perdera para o PS nos anos 80, a câmara está tecnicamente falida. É então aprovado um programa de recuperação financeira que passava pela redução de despesas com pessoal. É posto em prática um esquema de os funcionários serem reformados compulsivamente, após processo disciplinar, o qual era instaurado por excesso de faltas".
Em primeiro lugar, há que reconhecer que nunca o PCP - que eu saiba e, neste caso, posso dizer que prestei muita atenção - associou a saída de Carlos de Sousa, oficial ou oficiosamente, à questão do inquérito das aposentações compulsivas. É normal que a jornalista tenha fontes que lhe digam o contrário, mas na notícia em causa não é claro se as tem ou se se limitou a reproduzir o que se lembra do caso. Se é este o caso, é claro que se lembra de pouco e pouco se esforçou para procurar saber o que aconteceu.
Em resumo, a questão das aposentações compulsivas, associada ao contrato de reequilibrio financeiro que a Câmara Municpal assinou em 2004 com o Governo, segundo o qual a autarquia tinha a obrigação de reduzir em dez por cento por ano os seus efectivos, criou as condições para que se lançasse a acusação de existir um conluio entre o presidente da Câmara e os trabalhadores que foram alvo dos processos disciplinares com vista à aplicação da pena já referida. Há, ainda, que situar o caso no contexto das medidas que se anunciavam do aumento da idade de reforma. Ou seja, as aposentações interessavam a todos, na interpretação menos benévola do caso. A questão central sempre esteve concentrada no alegado conluio entre presidente e trabalhadores. Esta era a acusação que era preciso provar, porque, do ponto de vista dos procedimentos, os processos das aposentações não apresentavam grande mácula. Como se verá, tal acusação não teve pernas para andar.
Se a jornalista tivesse pesquisado no seu próprio jornal, teria ficado a saber - mesmo que se assuma que a razão que levou o PCP a afastar o autarca foi a das aposentações - que o processo no Ministério Público originado pelo inquérito da IGAT às aposentações compulsivas foi arquivado em Setembro de 2007. Referir esta informação era o mínimo que poderia ter feito para não pôr em causa, mais uma vez, a reputação do autarca Carlos de Sousa e dos que com ele trabalharam.
São José Almeida preferiu a via mais espalhafatosa para dar maior visibilidade à notícia, o que não deixa de ser criticável.
Mas isto nem é o pior, O pior é mesmo ter dado ouvidos a uma especulação sobre a possibilidade de Carlos de Sousa poder ser candidato independente à Câmara Municipal de Setúbal, apesar de afirmar que "apurou" que o antigo presidente não "tenciona voltar à actividade autárquica". É que, mesmo que o ex-presidente da CM Setúbal o desejasse, tal seria, do ponto de vista legal, impossível.
De acordo com a lei da limitação de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais, disponível no site da Comissão Nacional de Eleições (http://www.cne.pt/dl/legis_lei_46_2005.pdf), "no caso de renúncia ao mandato, os titulares dos órgãos referidos nos números anteriores não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia". Nesta mesma lei é imposto um limite ao número de mandatos consecutivos, disposição que também afectaria Carlos de Sousa.
Constata-se, pois, que, mesmo com a informação de que Carlos de Sousa não tenciona candidatar-se, a jornalista preferiu dar ouvidos a fontes que se revelam pouco fiáveis. Se o fossem, não teriam ensaiado esta manobra de lançar a confusão para ver o que dá.
Do ponto de vista jornalísitico, restam-me algumas dúvidas:
- Deve o jornal dar ouvidos a especulações sem qualquer fundamento, sem cuidar de cruzar a informação e confirmá-la sem margem para dúvidas, e ainda assim publicá-las?
- Deve o jornal publicar notícias em que não há a preocupação de fazer um enquadramento minimamente correcto dos antecedentes? Neste caso, parece-me que o minimo que a jornalista poderia ter feito seria referir que o Ministério Público arquivou as acusações da IGAT no caso das aposentações compulsivas, ainda que pudesse continuar a argumentar, bem ou mal, que essa foi a razão do afastamento de Carlos de Sousa pelo PCP.
- A saída de Carlos de Sousa do PCP é, sem qualquer dúvida, uma notícia relevante. Mas será que é necessário apimentar a coisa com meia dúzia de factos extraordinários, mas incorrectos, para chamar a atenção do leitor incauto?
Paulo Anjos
Explicações do director do PÚBLICO sobre as promoções de produtos associados:
O princípio geral é o seguinte:
1. Há um número ideal de páginas editoriais estabelecido para cada edição, cada caderno e cada suplemento. É o número de páginas de referência, que é discutido entre a direcção editorial e a administração.
2. Todos os dias (ou todas as semanas, no caso dos suplementos), a esse número de páginas são acrescentadas as páginas de publicidade e as páginas de promoções. Depois o número de páginas a imprimir é afinado, pois a rotativa só dá “saltos” de oito em oito páginas. Todas as semanas se verifica se os objectivos a cumprir pelas áreas editorial, comercial e de marketing estão a ser cumpridos, pois há dias em que se imprimem mais páginas do que o ideal, outros em que se imprimem menos.
3. Significa isto que o espaço reservado para a promoção de produtos associados ao jornal – produtos que sempre procurámos seleccionar de acordo com os padrões de qualidade do PÚBLICO, num processo em que a área editorial também participa, pois consideramos que representam um valor acrescentado para os leitores – não é “ganho” à custa do espaço editorial, o que não impede que por vezes tenhamos de fazer compromissos, devido às limitações impostas pelas características da rotativa. Nalguns dias com mais noticiário é a área das promoções que cede espaço, noutros é o contrário que se passa.
4. Este tipo de modelo para definir o número total de páginas do jornal e o espaço editorial diário é semelhante ao adoptado por jornais como El País e La Reppublica, tendo sido estabelecido no tempo em que aqueles dois diários tiveram uma participação no capital do PÚBLICO e estavam representados nos órgãos de gestão e supervisão.
José Manuel Fernandes
domingo, 26 de outubro de 2008
Chover no molhado
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