domingo, 6 de dezembro de 2009

A verdade a que temos direito

O jornalismo funciona muitas vezes pelo método de aproximações sucessivas ao rigor dos factos



A Refer desmentiu que favorecesse Manuel Godinho e o jornal não reagiu. Preferiu esquecer?



Que devem os leitores pensar do exercício do direito de resposta, que por lei os jornais são obrigados a publicar? Dão mais crédito às notícias ou aos desmentidos que provocaram?

A pertinente questão foi suscitada pela reacção de Vasco Almeida à publicação de três direitos de resposta relacionados com o caso Face Oculta. Numa carta inicial, constatava o leitor: “O PÚBLICO socorreu-se de um título de primeira página [‘Refer deixou prescrever acção contra empresário do Face Oculta’, manchete de 6 de Novembro] para noticiar um pretenso favorecimento do principal suspeito no caso [Manuel Godinho] por parte da Refer. Passados poucos dias [11 de Novembro], a Refer respondeu, de forma aliás bastante detalhada. A direcção do jornal não fez então, nem desde então, qualquer comentário à resposta da Refer: à espera do esquecimento? Há menos dias ainda [16 de Novembro], foi publicada uma carta do Sr. Joaquim Oliveira negando categoricamente qualquer favor de crédito por parte do BCP e insurgindo-se contra a repetição de uma notícia [‘BCP renegociou em Março dívida de Oliveira’, 8 de Novembro, pág. 8] publicada no PÚBLICO em Março passado, e também desmentida. A direcção não fez publicar qualquer posição que contrariasse o desmentido. Note-se que este facto foi inclusivamente usado pela nova estrela incandescente do comentadorismo nacional [Pedro Lomba], na sua primeira crónica para o PÚBLICO [‘Cronologia de um golpe’, 12 de Novembro]. A direcção acha que não tem de justificar as ‘notícias’ que dá? Os factos já não são factos?”

Seguiu-se nova carta do mesmo leitor: “Ainda a tinta não tinha secado e logo dei conta de outro desmentido suscitado por uma notícia do PÚBLICO, segundo a qual um inspector de finanças também envolvido no caso Face Oculta teria sido promovido várias vezes nos últimos anos [‘Fisco promoveu chefe com quatro condenações’, 19 de Novembro, pág. 1]. Notícia também cabalmente desmentida pelo organismo oficial envolvido [na edição de 22], e mais uma vez sem reacção da Direcção. Em que ficamos: os leitores não têm o direito de saber o grau de veracidade (total ou parcial) dos factos publicados?”

O provedor colocou estas questões à directora, que respondeu defendendo o direito de os leitores saberem o grau de veracidade das notícias: “Como regra, quando os factos publicados não são verdadeiros, o jornal corrige a informação na secção ‘O PÚBLICO errou’ logo no dia seguinte. Mas nos casos levantados pelo leitor não é disto que estamos a falar. A questão é que qualquer pessoa referida numa notícia, directa ou indirectamente, de forma que ‘possa afectar a sua reputação e boa fama’, tem direito a apresentar a sua versão dos factos aos leitores – o direito de resposta previsto na lei. O direito de resposta não existe para pôr em causa a veracidade das notícias, mas para os visados poderem apresentar a sua visão dos factos. Infelizmente, a lei permite que instituições, mesmo estatais, não prestem informações pedidas pelos jornalistas – por vezes insistentemente durante semanas e semanas – mas venham logo a seguir à publicação da notícia pôr em causa o seu rigor. A lei é aliás particularmente protectora dos protagonistas das notícias. Por exemplo, o jornal não pode recusar a publicação de um direito de resposta argumentando que o seu conteúdo não é verdadeiro, mas só se o texto não tiver relação directa com a notícia publicada ou se contiver ‘expressões desproporcionadamente desprimorosas’. A lei também diz que quando o direito de resposta é publicado, ‘só é permitida à direcção do periódico fazer uma breve anotação à mesma, da sua autoria, com o estrito fim de apontar qualquer inexactidão ou erro de facto contidos na resposta ou rectificação’. Além desta limitação legal, desde sempre que o PÚBLICO entende não ser correcto o jornal querer ter sempre a última palavra e desmentir o que vem na carta do direito de resposta. E por isso as notas da direcção escritas no fim dos direitos de resposta são, por regra, poucas e minimalistas. O nosso silêncio, nesses momentos, nada tem a ver com estar ‘à espera do esquecimento’ dos leitores, como o leitor sugere”.

Como estabelecer, então, a verdade dos factos o mais rigorosamente que seja possível? Continua Bárbara Reis: “Nenhuma destas duas questões (a lei e a nossa filosofia) impede que, após a publicação do direito de resposta, o jornal regresse ao tema (claro está que poderá haver novo direito de resposta como resultado dessa segunda notícia, e por aí fora). Foi aliás o que aconteceu, por exemplo, já depois de o direito de resposta do director-geral de Impostos ter sido publicado, em que voltámos a escrever sobre o chefe das Finanças envolvido no caso Face Oculta (‘Direcção-Geral de Impostos afasta das funções o chefe da repartição de Finanças de S. João da Madeira’, 25 de Novembro, pág. 8)”.

Conclui Bárbara Reis: “O leitor pergunta se ‘a direcção do jornal acha que não tem de justificar as ‘notícias’ que dá’. De facto, o PÚBLICO não vê grande vantagem no exercício de justificar notícias correctas. O PÚBLICO publica as notícias que considera prontas a serem publicadas e corrige-as a seguir caso contenham erros. Noto ainda que, muitas vezes, os direitos de resposta, mesmo quando têm apenas factos totalmente verdadeiros, só na aparência – e às vezes nem isso – desmentem as notícias publicadas. A metodologia é a mesma para o direito de rectificação, sobre ‘referências de facto inverídicas ou erróneas’ que digam respeito à pessoa que o exerce”.

Do modo de produção da informação jornalística resulta, com efeito, que nem sempre a verdade definitiva, rigorosa e absoluta fique estabelecida numa única notícia – embora esse deva ser sempre o objectivo a alcançar pelo seu autor. Os desenvolvimentos, as reacções, as rectificações e os desmentidos fazem parte desse processo contínuo e permanente, em que se procura atingir a tal verdade muitas vezes por um método de aproximações sucessivas (o que significa que, quando o jornal nada mais publica após um desmentido, reconhece implicitamente que o reclamante tem razão ou que não possui dados que o contradigam). Nessa medida, parecem ao provedor aceitáveis as explicações da directora.


CAIXA:

Déjà vu

O texto de opinião intitulado “O (des)processo civilizacional: a Suíça e os minaretes”, de Paulo Mendes Pinto, publicado na pág. 36 da edição da passada terça-feira era reproduzido tal qual (excepto um pequeno corte) nesse mesmo dia na secção “Blogues em papel”, do P2, sob o título “Onde estão as luzes?”. Situação insólita, revelando que o artigo não era original e já circulava na internet, que levou o provedor a solicitar uma explicação à directora

Assumindo o “erro” do jornal, Bárbara Reis esclareceu: “Paulo Mendes Pinto, que aliás já anteriormente tinha publicado artigos de opinião no jornal, enviou-nos o texto com pedido de publicação no mesmo dia em que colocou esse mesmo texto no seu blogue. Nunca imaginámos que o texto não fosse inédito. É aliás raríssimo publicarmos textos de opinião no dia em que nos chegam. Uma série de circunstâncias levou a que tivéssemos espaço suficiente nesse dia. Por azar e coincidência totais, quando o P2 pesquisou posts sobre o referendo suíço que proibiu os minaretes, encontrou o referido texto, colocado no blogue Religare nesse dia. Ao percebermos que o texto saíra duas vezes na mesma edição, contactámos o autor do artigo, que admitiu tê-lo colocado no blogue por engano”.

Bárbara Reis enviou ao provedor o pedido de desculpas apresentado por Paulo Mendes Pinto ao jornal, onde explica: “Deu-se uma falha que é apenas da minha responsabilidade. Normalmente, como não sei exactamente quando o artigo sai no PÚBLICO, coloco o texto no blogue (na parte invisível) para apenas sair uma semana depois (se entretanto sair no jornal, torno-o visível, sempre com a indicação da publicação original). Neste caso, devo ter clicado mal na data e escolhido a semana em que estava e não a semana seguinte”.

Deve dizer-se que esta repetição não é caso único, e que poderia evitar-se se o jornal tivesse um responsável pela sua coordenação global – a velha figura do chefe de redacção, infelizmente extinta na maior parte dos órgãos de informação.

Desde que, em 10 de Dezembro do ano passado, o PÚBLICO repetiu a mesma notícia (“Jay Leno fica na NBC”, na pág. 15, e “Afinal Jay Leno fica na NBC”, na pág. 11 do P2), o provedor tem vindo a tomar nota da algumas redundâncias nas páginas do jornal. É o caso da notícia sobre a morte de Lux Interior, líder da banda The Cramps, dada na pág. 20 e na pág. 13 do P2 de 6 de Fevereiro, das notícias de 23 de Setembro “Proibição de fumar em locais públicos pode evitar até um terço dos enfartes” (pág. 14) e “Proibição de fumar em público diminui ataques cardíacos” (pág. 21) ou da informação de que o actor norte-americano Morgan Freeman chegou a acordo para indemnizar a mulher que se sentava a seu lado depois de ter tido um acidente de viação, saída na secção “Pessoas” em 7 e em 9 de Setembro. Até um direito de resposta, relativo à notícia “Confederação do Comércio exige suspensão da nova lei do licenciamento comercial”, de 27 de Janeiro, saiu, ipsis verbis, duas vezes na edição de quatro dias depois, a primeira, na pág. 35, como sendo da Secretaria de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor, e a segunda logo na página seguinte, atribuída à assessora de imprensa do Ministério da Economia e da Inovação.

Até sucede que a mesma informação possa ser publicada no mesmo texto, como na notícia “Detido suposto violador de enfermeira do Amadora-Sintra”, na pág. 31 de 3 de Outubro, em cujo primeira parágrafo se falava em “uma enfermeira do Hospital Fernando Fonseca, na Amadora, que foi abordada no parque de estacionamento daquela unidade de saúde” e no segundo parágrafo que “a enfermeira, de 25 anos, foi abordada pelo alegado violador no parque de estacionamento”.

Publicada em 6 de Dezembro de 2009

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