NOTA: Por lapso esta crónica não foi colocada na devida altura no blogue, o que se faz agora. A crónica hoje publicada pode ser lida mais abaixo.
Seria desejável que as notícias do PÚBLICO não se confundissem com marketing, mas às vezes acontece
Se a jornalista considera o Kindle vantajoso é admissível que o reconheça sem constran-
gimentos
A chamada da pág. 1 dizia: “Leitor de e-books. Cuidado, o novo Kindle vicia”. A capa do P2 anunciava: “Rendidos ao Kindle 2, o novo leitor de livros electrónicos”. E a entrada do artigo propriamente dito, nas págs. 4-6 do P2 de 30 de Junho, relatava que a autora, a jornalista Isabel Coutinho, “está completamente rendida pelo leitor de livros electrónicos da Amazon [empresa de venda de livros online]”. O texto não deixava lugar a dúvidas: “Quando se tem um Kindle nas mãos mais do que cinco minutos fica-se apaixonado por ele (...). Não queremos mais saber de outros leitores de e-books. (...) Foi isso que me aconteceu”.e
O leitor Nuno Brandão não apreciou esta linguagem: “À medida que ia lendo o artigo já não sabia se se tratava de um texto publicitário ou jornalístico, tal o tom elegíaco adoptado por quem assina. Passagens há que se assemelham à ficha técnica do produto (...). Contava que no final se escrevesse qualquer coisa como ‘viagem patrocinada pela Amazon’, mas nem isso aparece”. E questionou: ”O teor deste artigo coaduna-se com os deveres de isenção e de distanciamento comercial? Deveres esses que, presumo, são impostos pela deontologia jornalística e seguramente constam do Livro de Estilo do PÚBLICO”.
Numa primeira impressão, o provedor sentiu o mesmo desconforto do leitor, com todas as setas de néon, desde a primeira página, a apontarem para a excelência de um produto comercial. Mas Isabel Coutinho esclareceu-o: “Que fique muito claro que no final de Maio fui aos Estados Unidos de férias (viagem paga do meu bolso), comprei um Kindle 2 através do site da Amazon (pago do meu bolso) e nunca tive nenhum contacto com qualquer director de marketing ou com seja quem for da Amazon para fazer este trabalho. O texto (...) é um relato na primeira pessoa da minha experiência com o Kindle que comprei por minha iniciativa. Não é a primeira vez que no PÚBLICO escrevo sobre o Kindle ou outros aparelhos que servem para ler livros electrónicos. Mas foi a primeira vez que escrevi sobre este aparelho depois de o usar diariamente. Tenho aliás um outro aparelho para ler livros em formato electrónico, um Sony Reader, que também comprei (pago com dinheiro do meu bolso), e por isso tenho termo de comparação. Sei quais são as vantagens do Kindle em relação aos seus concorrentes e quais as desvantagens na óptica do utilizador. (...) Apesar do meu entusiasmo – que é genuíno – , vou referindo essas desvantagens no meu texto (...). Na minha coluna Ciberescritas (...) tenho escrito sobre estes aparelhos (alguns desses textos estão acessíveis no blogue Ciberescritas). Em 1 de Dezembro de 2007, escrevi o tema de capa do suplemento ‘Digital’ onde se discutia ‘se o futuro do livro passa pelo Kindle’ e fazia uma cronologia sobre todos os outros leitores de e-books (vantagens e desvantagens). Quem acompanha o meu trabalho sabe as reservas que sempre tive em relação ao Kindle, mas depois de o comprar e utilizar todos os dias mudei de opinião”.
Mais do que uma opinião, o provedor considera o artigo, na verdade, um testemunho de quem testa um produto comercial e fornece um ponto de vista individual sobre as suas virtudes e os seus defeitos (no caso vertente, mais aquelas do que estes). Sendo assim, é admissível que, se a jornalista considera o produto vantajoso, o possa reconhecer sem constrangimentos e sem perder a isenção, no âmbito do registo pessoal utilizado.
Ao contrário do que pressupõe o leitor, nem o Livro de Estilo do PÚBLICO nem o Código Deontológico dos jornalistas portugueses contêm disposições limitando este estilo de escrita, que alguns considerarão “promocional” se a apreciação for positiva, mas que poderá ser demolidora se o jornalista achar o teste decepcionante.
É claro que existem disposições sobre objectividade jornalística (“pluralidade das fontes, investigação cuidada” – estipula o Livro de Estilo) e que o artigo em causa se baseia sobretudo na subjectividade da repórter, que não confronta a sua experiência com a de outros utilizadores do aparelho. Mas, aplicada à letra, essa regra eliminaria o género de jornalismo testemunhal que pode enriquecer os media. O tema não se esgota no texto de Isabel Coutinho, e o PÚBLICO poderá cumprir tal desiderato procurando outros pontos de vista e acompanhando a evolução do sector.
De um artigo extenso para uma notícia de um parágrafo, mantém-se o risco de se confundir marketing e jornalismo. É o caso da nota não assinada inserida na pág. 15 de 3 de Julho anunciando que "a Visão Junior, da Impresa, única revista nacional dedicada à faixa etária 6-14 anos, é a primeira publicação periódica a integrar o Plano Nacional de Leitura [PNL]". Para a leitora Claudia S. V., a notícia “está completamente errada”, por três razões: “1. Esta revista não é nem nunca foi a única revista nacional dedicada ao público infanto-juvenil; posso pelo menos mencionar seis títulos, dedicados ao mesmo target (...). 2. Por mais abrangente que se queira ser (...), quem é que não acha estranho que uma revista seja direccionada a um target de 6 aos 14 anos? (...) Os interesses em comum entre estas idades são zero (...). 3. Lamento informar, mas esta revista não é a primeira publicação periódica a ter o apoio do PNL. Acredito que seja bom querer passar a mensagem de que foram os primeiros, mas outros (...) já o fizeram anteriormente. A primeira publicação periódica foi um suplemento do jornal O 1º de Janeiro, ‘O Janeirinho’, dirigido a crianças, e das revistas (...) foi a Giggle, para o target juvenil”.
Ana Fernandes, que editou a notícia, explica que se tratava de um versão sintética da que fora difundida na véspera pelo PUBLICO.PT: “Como tive de a reduzir muito (...), cortei um dado essencial, como se pode ver comparando com o original: ‘Única revista nacional de informação dedicada à faixa etária 6-14 anos’. Este dado muda muito (...). O erro foi meu, assumo-o e lamento. (...) Em relação aos outros dois pontos, não me parece que a leitora tenha razão – o target é definido pela Visão Júnior, não temos nada a ver com isso (lembro-me que a Tintin se apresentava como uma revista para um público dos 7 aos 77) (...)”.
Quanto ao suposto pioneirismo da revista visada, esclarece Ana Machado, a autora das duas notícias (online e papel): “Sobre o facto de ser a primeira, é verdade, uma vez que a tal Giggle é uma publicação exclusivamente electrónica, dedicada a crianças e famílias, coisa que a leitora não refere. E sobre o ‘Janeirinho’ não é uma revista, é um suplemento”.
Se toda a gende lesse notícias pelo Kindle, talvez o problema não se colocasse, já que se dispensava o resumo da notícia. De todo o modo, tanto na versão electrónica como na impressa o provedor detecta dois problemas: assume-se como facto que a revista se destina mesmo ao público dos 6-14 anos (o que não passará de um slogan comercial, tal como os 7-77 da antiga Tintin) e não existe a necessária menção à fonte ou fontes que transmitiram os dados, o que salvaguardaria melhor a posição do jornal.
CAIXA:
A síndrome da bica
Por que será que, tão amiúde, os jornalistas não acertam na concordância entre sujeito e predicado em casos de género (masculino/feminino) e quantidade (singular/plural)? Parece que suspenderam a frase a meio para tomar um café ou fumar um cigarro e, no regresso, continuaram a escrever sem ler o que estava atrás. Casos recentes do PÚBLICO: “a forma como reagiu ontem (...) às notícias sobre as trapalhadas do recenseamento eleitoral mostram que mantém o estilo” (13 de Julho, pág. 32); “A derrota dos socialistas nas eleições para o Parlamento Europeu levaram o secretário-geral do PS, José Sócrates, a tomar uma decisão inédita” (6/7, pág. 1); “A leitura das primeiras páginas desse livro lembraram-lhe a descrição da Belém do Pará” (P2, 6/7, pág. 4); “O mediatismo à volta das acções da mãe de Martim podem ter pesado” (legenda, 1/7, pág. 6); “As imagens do vaivém Atlantis a ser transportado por um avião no Centro Espacial Kennedy chocou o Vaticano” (Inimigo Público, 11/6, pág. 6); “o alargamento definitivo dos passeios e a redução do trânsito na Praça do Comércio tem sido elogiada” (2/6, pág. 23); “os Verdes, presididos por Daniel Cohn-Bendit, que reforçaram fortemente a sua presença no PE com 52 deputados, defendeu pelo contrário uma frente ‘anti-Barroso’” (9/6, pág. 9); “BPN e envolvimento do PSD volta em força ao discurso socialista” (título, 2/6, pág. 8); “O paradigma da sociedade da abundância e do desperdício, do consumo fácil, (...) não trouxeram a felicidade” (P2, 15/5, pág. 3); “Críticas à lei do financiamento incomoda socialistas” (título, 7/5, pág. 6); “A intensificação dos atentados e o aumento significativo do número de vítimas mortais da violência em Abril no Iraque mostra um regresso em força da insurreição sunita” (4/5, pág. 12); “Suspeitas de maus tratos e de alegada negligência médica leva Ministério Público a levantar corpo da urna” (entrada, 18/4, pág. 18); “o cariz de intervenção e alerta social marcaram sempre presença” (15/4, pág. 6); “Novas regras de colocação de professores faz crescer procura de diplomas de Espanhol” (título, 30/3 pág. 7); “O primeiro-ministro José Sócrates, acompanhado pelo ministro da Economia Manuel Pinho, visitaram ontem a Energie” (P2, 25/3, pág. 2); “Cada vez mais o nosso destino pessoal e de nossos filhos (...) estão da dependência do Estado” (26/3, pág. 33); “Os julgamentos na praça pública, feitos através da comunicação social que dá voz apenas aos intervenientes que decide defender, tornou-se um hábito em Portugal” (26/3, pág. 34); “Livre-trânsito de 23 quadros de serviço de informações foram reproduzidos num sistema acessível a centenas de pessoas” (entrada, 14/2, pág. 6); “as reacções do treinador a cada um dos falhanços dos avançados mostrava a todos os que seguiam o jogo o estado de espírito dominante” (P2, 13/2, pág. 2); “A Media Capital viu os seus lucros cair 36 por cento” (13/2, pág. 33); “para ver se algum voto de protesto e o prestígio local de muitos presidentes de câmara safa o partido” (13/2, pág. 37); “o apelo, em campanhas eleitorais, ao voto emanadas de organizações religiosas” (P2, 12/2, pág. 3); “manjava conquilhas com um à-vontade que fariam James Bond parecer um matarruano” (10/2, pág. 35). Mas que fazer, se o próprio Livro de Estilo do jornal está afectado da mesma síndrome: “A capa dos suplementos e da Pública não incluirão publicidade” (pág. 172)?
Publicada em 19 de Julho de 2009
domingo, 20 de dezembro de 2009
Notícias em néon
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