domingo, 7 de junho de 2009

Que língua fala o PÚBLICO?

O uso de estrangeirismos deve ter como base a sua inteligibilidade máxima pelo máximo número de leitores

Churchill foi citado no artigo, mas disse ao certo o quê?

Encontrando-se o provedor (não nestas funções) a dialogar, meses atrás, com o músico espanhol Paco Ibañez para lhe preparar uma entrevista, foi em certo ponto surpreendido pelo interlocutor com uma sucessão de impropérios no mais puro vernáculo castelhano, proferidos em estado de grande agitação. Demorou alguns segundos até o provedor perceber que tão explosiva reacção se devera ao facto de ter usado a sigla inglesa “OK”. O cantor de protesto protestava contra esta “submissão” linguística ao “imperialismo americano”, em termos tão vivos que chegou a ameaçar não conceder a entrevista. Não havia equivalente em português? Sim, o “está bem” (mas quem é que hoje entre nós diz “está bem” quando tem à mão o mais sintético e eficaz “OK”?). Para não prejudicar o objectivo do encontro, o provedor, que não aprecia particularmente os talibãs da cultura (os mesmos que destruíram os budas de Bamiyan por também não fazerem parte de uma suposta matriz identitária nacional), optou por não contrapor a dinâmica vital de toda a língua viva (se não ainda hoje falávamos latim na Península Ibérica), que influencia e é influenciada por outras línguas, ou pedir a Ibañez a sua opinião sobre a quantidade cada vez maior de termos e expressões em espanhol que entram no inglês falado na pátria do “imperialismo”. Limitou-se a exercer um esforço mental para dizer “está bem” (ou “vale”) em vez de “OK” até ao fim da entrevista.

Pretendermos, com efeito, travar pela acção individual a introdução de estrangeirismos no nosso idioma é como tentar barrar o vento com a palma da mão. Este é um problema que se coloca com especial acuidade no jornalismo, cujo principal instrumento de trabalho, independentemente do meio que usa, é a língua. Se bem que seja forçoso reconhecermos tal “contaminação” linguística no português, a questão que se coloca é esta: quais os termos estrangeiros que é legítimo usar e quais aqueles que não fazem sentido? Algum critério tem de existir, para que às tantas um jornal, por exemplo, não seja todo ele produzido noutra(s) língua(s). Mas que critério?

Um ou outro leitor tem reclamado contra o que considera um uso excessivo de estrangeirismos nas páginas do PÚBLICO. O protesto mais recente veio de Odílio Lopes, chocado com a quantidade de galicismos que encontra no jornal: “Queria chamar a atenção para a pouca vergonha como os jornalistas do PÚBLICO estão a tratar a língua portuguesa. São francesismos uns atrás dos outros e todos os dias, nas vossas páginas. Gostava de saber qual é o sentido de estar a escrever “réveillon”, “dossier”, “tournée”, “rentrée política”, “lingerie”, “foie-gras” (...), “atelier”, “bricolage”, “glamour”, “passerelle”, “comité”, “boutique”, “fait-divers”, “prêt à porter”, “plateau”, “pivot”, “buffet”..., querem mais? (...) Há palavras em português para estes francesismos todos; pergunto: não há dicionários no PÚBLICO? Os jornalistas não têm formação em português? Há algum interesse político ou económico em defender a língua francesa (eles defendem a nossa)? É uma falta de respeito para com os leitores e uma falta de profissionalismo. Certamente que esses senhores não têm auto-estima, não têm orgulho em serem portugueses (eu tenho) e na nossa língua. O cineasta Manoel de Oliveira dizia há dias: 'Não há mais português que um português que está no estrangeiro, mas um português em Portugal é um desastre'. Tenho que dar-lhe razão. Vós, a comunicação social (...), estais a dar cabo da língua portuguesa. A culpa é toda vossa, só que depois os nossos políticos e intelectuais, como não têm nível, tentam copiar. Basta ver como se chama o comboio de alta velocidade em Portugal: TGV [“train à grande vitesse” – comboio de alta velocidade]! Não podia ser CAV? Não, tinha que ser em francês. Em Espanha é AVE, na Alemanha é ICE e em Portugal, claro, TGV”.

O provedor acha porém que há muito os anglicismos substituíram os galicismos como o tipo de estrangeirismo mais usado na imprensa portuguesa, como se os autores buscassem uma espécie de caução intelectual pela frequência com que recorrem, sem tradução, a uma palavra ou frase em inglês. O PÚBLICO não foge à regra em todas as suas secções, e em particular no P2 e no “Ípsilon”, onde se acolhe o tipo de críticos e jornalistas que parecem procurar maior reconhecimento junto de amigos e outros membros da élite cultural do que junto dos leitores comuns. Os exemplos abundam, e seria fastidioso enumerá-los com um mínimo de critério e exaustão. Ontem mesmo, escrevia-se na entrada de um artigo sobre a próxima representação portuguesa na Bienal de Veneza (P2, pág. 4): “Atenção: It’ a kind of magic”. Mais à frente, noutros artigos, dizia-se que Ana Zanatti “fez o seu outing” (pág. 10), que Susan Boyle “já tem manager” ou que a “rainha Sofia voa em low cost” (traduzindo do espanhol: “La reina Sofía vuela en bajo coste”) (pág, 17), tal como no primeiro caderno se falava num “analista político e fellow de Jornalismo Online” (pág. 15). E no primeiro texto mencionado falava-se em filmes “à velocidade standard de 24 frames”.

Standard”, aliás é um termo favorito: “o próprio modelo de financiamento do standard global do serviço público que é a BBC é questionado” (P2, 2 de Maio, pág. 18). Tal como “mainstream”: “Liderar contra o mainstream” é o título de um artigo do P2 de 18 de Abril (pág. 12), que usa várias vezes a palavra (o “mainstream do poder em Portugal”) sem cuidar de explicar o seu significado. Num texto sobre cinema no P2 de 20 de Maio acha-se dispensável traduzir “southern belle” ou “always depended on the kindness of strangers” (frase célebre, é certo, mas quantos leitores conhecem Tennesse Williams no original?), embora já se faça para “I’m going to be a faggot” (“Vou ser paneleiro”). E ao escrever-se que “Carrey investe contra um bear que está de joelhos”, até o provedor (para quem o inglês é a segunda língua) fica intrigado: “bear” significa urso, mas está-se a falar de sexo homossexual, não de zoofilia. Veja-se no P2 de 15 de Abril, num artigo que contém expressões como “low low budget” ou “tagline deste filme” (pág. 13), este destaque (não traduzido no texto): “Pedro Boucherie Mendes descreve Vila Gondra com uma frase de Churchill: An attitude is a little thing that makes a big difference”. Ou no de 25 de Abril este título, também não traduzido no texto (pág. 16): “’All right, Mr. Paixão Martins, I’m ready for my close-up’” (parafraseia-se aqui outra famosa citação, mas quantos leitores viram o filme Sunset Boulevard sem precisarem de recorrer a legendas?). E para quê traduzir de afrikander para inglês e não para português?: “Ele era o kaffir boetie ou nigger lover” (P2 de 4 de Maio, pág. 4).

Quanto ao “Ípsilon”, um único artigo, sobre ficções vampirescas, nas págs. 6 a 9 de 1 de Maio, bastaria para ilustrar a prática, com palavras ou frases como “slipstream”, “fine romance with no kisses”, “gore”, “target”, “get it on” ou “bite me”. Mas acrescenta-se também o título do texto sobre o escritor Jo Nesbø publicado na edição da passada sexta-feira (págs. 10-11): “Born to be a star” (por que não, já agora, dizê-lo em norueguês, a língua do retratado?).

Dirão que tal tipo de jornalismo se dirige a camadas jovens e informadas, familiarizadas com estas expressões inglesas, mas julga o provedor que o projecto do PÚBLICO tem por alvo a generalidade dos cidadãos que falam português sem privilegiar minorias ou discriminar grupos sociais (atitude que, do ponto de vista da sua situação económica, o jornal não está sequer em condições de assumir).

É inevitável que muitos estrangeirismos venham a ser adoptados pela língua portuguesa, quando a sua utilização estiver mais ou menos massificada, e que os media incorporem logicamente pelo menos alguns deles na sua linguagem antes de os filólogos os acrescentarem aos dicionários. Por isso, não fará sentido, como propõe o leitor Odílio Lopes, vasculhar o vocabulário tradicional para dizer “roupa íntima” em vez de “lingerie”, “fígado gordo” em vez de “foie-gras” ou até mesmo “passagem de ano” em vez de “réveillon” (ou ainda, como impunha Paco Ibañez, “está bem” em vez de “OK”), tudo expressões a caírem em desuso no português.

Mas o critério do recurso a palavras estrangeiras deveria ter sempre como base fundamental a sua inteligibilidade máxima pelo máximo número de membros do público, o que muitas vezes não sucede neste jornal. É claro que isso é muito subjectivo: será possível passar tal critério a escrito, com especificação do que é ou não aceitável? Naturalmente não: depende sempre do bom senso de cada redactor ou editor em cada momento. No seu caso, o provedor, ao redigir um texto, costuma pensar: “Será que os meus pais vão perceber o que escrevi?” (para esta crónica, se não desistirem a meio, vão seguramente necessitar de recorrer com muita intensidade aos dicionários). Tudo o que pode pois recomendar aos jornalistas do PÚBLICO é que tenham idêntica atitude.

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Longe de mais

Na ânsia de pretender descobrir a praga de Catual em todo o lado no PÚBLICO (o que não é difícil), o provedor foi longe de mais em dois dos 27 exemplos que apontou na sua anterior crónica. A sintaxe das frases “Uma das coisas que me agrada sobremaneira ver” (P2, 22/03, p. 22) e “um dos factores do imobilismo insanável que impede o progresso económico do país” (P2, 21/03, p. 3) está correctíssima, não fazendo portanto parte da lista de discordâncias com o uso como sujeito da partícula "que". O justo reparo foi feito pelo leitor Paulo Rato, penitenciando-se o provedor pelos erros. À guisa de compensação, aqui ficam três novos exemplos da epidemia, retirados de um só texto da semana que passou (“Júdice, Filomena Mónica e Helena Roseta assinam petição pela Praça do Comércio”, 2 de Junho, pág. 23): “é uma das figuras que assinou a petição”, “é outro dos nomes que surge no abaixo-assinado” e “tem sido uma das questões que mais contestação tem merecido”.

Publicada em 7 de Junho de 2009

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