domingo, 26 de abril de 2009

O que escrever em título

Ser apelativo, sintético e exacto nos títulos é um dos desafios que se colocam a qualquer jornalista, e nem todos o superam



Queixa-se a leitora de não estar no texto o que diz o título: que os ciganos “aleluia” se julgam melhores

“Parlamento Europeu aprovou alargamento dos direitos dos artistas de 50 para 70 anos”, dizia o título principal da pág. 19 do PÚBLICO da passada sexta-feira. Afinal, conforme a noticia, tratava-se apenas dos direitos dos músicos, que assim ficavam equiparados aos dos restantes artistas (há muito abrangidos pela lei dos 70 anos).

Quantas vezes não lemos já notícias que não correspondem ao que se anuncia nos títulos? É uma queixa recorrente ao provedor, e um sintoma do rigor praticado pelas redacções. Ser apelativo, sintético e exacto nos títulos é um dos desafios que se colocam aos jornalistas, e nem todos o superam. Para complicar, muitas vezes quem produz o título não é quem elabora a notícia, aumentando-se a probabilidade de erro.

Reclamou o leitor J.P. Oliveira: “Manifesto tristeza pelo título irresponsável ‘Álcool e drogas - estudantes portugueses portam-se bem’ que o PÚBLICO publicou a 27 de Março na primeira página. Perante tema tão delicado (nos EUA, por exemplo, é um dos maiores problemas de saúde pública que as autoridades enfrentam), como é possível utilizar a expressão ‘portam-se bem’? Foi algum estagiário que o escreveu? E, em caso afirmativo, não há um editor que reveja os conteúdos antes de publicados? Dentro da notícia, felizmente, já há um bocadinho mais de rigor e ética no tratamento do assunto”. O panorama descrito na notícia, baseada num estudo de âmbito europeu, é com efeito demasiado alarmante para se poder dizer que os estudantes portugueses se portam bem, o que é de resto logo contrariado pelo título no interior (pág. 6) – “Aumentou [em Portugal] o número de estudantes de 15 e 16 anos a beber muito em pouco tempo” –, assim como por uma das passagens do texto: “O consumo de grande quantidade de álcool num curto espaço de tempo aumentou em mais de metade dos países, especialmente entre as raparigas (...). ‘O aumento mais pronunciado ocorreu em Portugal entre 2003 e 2007, onde o número de estudantes que relata episódios de consumo excessivo (...) nos 30 dias anteriores passou de 25 para 56 por cento’.” É isto um atestado de bom comportamento?

Segundo o estudo em questão, Portugal situa-se abaixo das médias europeias em consumo de tabaco, álcool e drogas, mas só por si isso não é necessariamente um panorama animador, ao contrário do que se infere de um título longe de reflectir a realidade e a própria notícia.

Observou por outro lado a socióloga Ana Cruz, a propósito da reportagem de Bárbara Wong intitulada “Os ciganos aleluia acreditam que são melhores do que os outros”, publicada nas págs. 6-7 do P2 de 23 de Março: “Fiquei muito surpreendida com o título (...). Em nenhuma parte do texto se pode tirar tal conclusão. E sendo assim não se percebe como se chegou a essa conclusão. Trabalho há anos na zona das Galinheiras/Ameixoeira [área da capital onde se realizou a reportagem] e conheço bem os ciganos frequentadores do culto [da Igreja Evangélica Filadélfia”, ou “aleluia”]. Não partilho dessa conclusão, e caso tenha sido afirmado, por que não está referenciado na notícia?”

De facto assim é: mesmo que o pensem (como sucede com a maioria das confissões religiosas), nenhum dos entrevistados se declara melhor do que os não pertencentes ao seu culto. “Não era título, mas esta ideia estava na entrada e foi puxada para título, com o meu conhecimento”, explica Bárbara Wong, por solicitação do provedor. “Ao longo do texto, pela voz de dois pastores da Igreja Filadélfia, ficamos a saber que os seus crentes abdicam de alguns costumes e práticas, como beber nos casamentos ou mentir quando negoceiam. Também o modo como festejam ou resolvem as contendas entre famílias mudou. Não vendem contrafacção, garante o pastor Sidnei. ‘Quem não é cigano ainda nos vê da mesma maneira, mas quem nos conhece sabe que há diferenças entre os que andam na Igreja e os outros’, acrescenta. Uma vez que procuram cumprir os dez mandamentos, alguns dos quais estão plasmados nas leis da maior parte dos países, creio que não é um abuso dizer que estes ciganos acreditam que são melhores que os outros”.

O provedor julga procedente a queixa da leitora, já que um título de notícia ou reportagem não deve dizer outra coisa que não esteja contida no texto que lhe corresponde nem adiantar interpretações desse texto. A propósito, a reportagem (objecto também de um pedido de esclarecimento entretanto já publicado a 6 de Abril) tende a fazer uma divisão entre ciganos que se portam bem (para recorrer a outro título antes aqui mencionado), os quais seriam os do grupo “aleluia”, e os restantes, praticando “tradições (...) que lhes dão má fama” (segundo se escreve na entrada), as quais têm a ver, por exemplo, com “mentir quando negoceiam” ou vender “contrafacção” . Ora, podem existir nesta simplificação conotações racistas, já que ser membro (não aleluia) da comunidade cignada não implica forçosamente ser criminoso. Há quem não seja nem uma coisa nem outra (como em qualquer outra enia). Vale a pena evocar aqui o ponto 6 dos “Princípios e normas de conduta profissional” contidos no Livro de Estilo deste jornal: “O jornalista do PÚBLICO recusa todos os preconceitos e estereótipos de linguagem que firam a sensibilidade comum em assuntos que envolvem idade, etnia, origem nacional, religião, opção ideológica, orientação sexual ou sexo”.

Por fim, uma notícia onde o problema, segundo Belarmino Craveiro Bolito, não residiria apenas no título (“Especialistas de energia denunciam ‘embuste’ na visita de [José] Sócrates e [Manuel] Pinho à Energie”, pág. 27 de 24 de Março com chamada à primeira pág.), mas no próprio conteúdo, escrito por Lurdes Ferreira, onde em resumo se sugeria que a ida do chefe do Governo e do seu ministro da Economia à empresa citada, numa acção destinada a apoiar o consumo de energia solar, seria enganadora, na medida em que a tecnologia das chamadas bombas de calor aí produzidas “não é solar, mas sim de base eléctrica”. Escreve o leitor: “Saberá o PÚBLICO, por acaso, o que são ‘bombas de calor’? É que, pela leitura do artigo, se fica a saber que o seu autor não sabe, nem se preocupou em saber (...). Saberá, por acaso, o que são ‘painéis solares térmicos’? Claro que, como toda a gente, a jornalista já os terá visto nos telhados de algumas casas, mas, também, à semelhança da maioria das pessoas, não sabe mais nada (...). Pois é: ‘Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão’? ‘Painéis solares térmicos’ são simples e simpáticos permutadores de calor de origem solar, integrados num sistema de aquecimento ou consumo, em que normalmente não são a única fonte de calor (complementada habitualmente por electricidade). ‘Bombas de calor’ são simpáticos sistemas permutadores de calor de origem diversa (entre elas a mais comum é a solar) (...) integrados em outros sistemas de aquecimento ou consumo, em que normalmente não são a única fonte de calor (complementada habitualmente por electricidade). Qual dos dois sistemas é mais ecológico? Qual é mais eficaz? Em qual devemos apostar (se é que faz sentido esta pergunta)? O que sem dúvida podemos afirmar é que qualquer deles não garante a autonomia energética num sistema de aquecimento. Mais: à partida, parece ser mais certo dizer que uma bem escolhida ‘bomba de calor’ é a que mais autonomia garante (...). Não se percebe de todo esta animosidade do PÚBLICO para com a ‘bomba de calor’.”

Numa detalhada resposta (que pela sua extensão se remete para o blogue do provedor, juntamente com as interpretações políticas feitas pelo leitor), Lurdes Ferreira justifica em síntese: “O PÚBLICO consultou informação sobre a matéria e também opinião junto de peritos e instituições, (...) Tanto os designados painéis solares termodinâmicos vendidos pela Energie como os colectores solares térmicos são sistemas termodinâmicos, porque ambos funcionam segundo o princípio da troca de calor com o ambiente externo (...). A diferença (...) tem a ver com a forma como cada um deles usa a energia solar e a energia eléctrica. (...) Para os primeiros, o sol é a sua energia principal, para os segundos, é subsidiária. Digo no meu texto que os cálculos técnicos existentes indicam que o designado sistema termodinâmico consome 10 vezes mais energia eléctrica do que um colector solar térmico quando este recorre à energia eléctrica como energia de apoio para os momentos em que não há sol ou este é insuficiente”.

Considera o provedor que a jornalista procurou ir mais longe do que o mero registo de um acto oficial, investigando junto de fontes credíveis, questionando o que estava por detrás das aparências e prestando por isso um serviço mais completo aos leitores. Não encontra pois razões para julgar fundamentada a crítica recebida.

Para tornar a notícia mais equilibrada, Lurdes Ferreira poderia, é certo, tentar confrontar Sócrates ou Pinho com os dados que apurou (mesmo que não quisessem responder), mas sobre isso não reclamou o leitor.


CAIXA:

Veja as diferenças

Na sua anterior crónica, o provedor discorreu (pela segunda vez) acerca de uma queixa relativa ao PÚBLICO de 30 de Março, por conter uma falsa primeira página com um anúncio que, apesar da menção “PUBLICIDADE”, possuía um grafismo idêntico ao das verdadeiras primeiras páginas do jornal. Para os leitores perceberem do que se falava, solicitou o provedor ao responsável pela maquetagem que publicasse as duas primeiras páginas, juntas com este destaque: “A imagem da falsa primeira página não é em tudo similar à autêntica: um segundo olhar dissipará a ambiguidade”. Devido ao que – tudo o indica – consistiu num erro de comunicação, surgiram de facto duas primeiras páginas, uma editorial e uma de publicidade, mas nenhuma publicada na data em causa. Para que os leitores não julguem que alguém os tenta ludibriar, publicam-se aqui as duas páginas da polémica. [imagens a colocar on-line brevemente]

Publicada em 26 de Abril de 2009

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