Ao PÚBLICO não basta manifestar a sua independência; será necessário também saber manter a isenção
Estaline podia ser acusado pela falta de oposição interna, mas o mesmo não se pode dizer do líder do PS
“Isenção” não é palavra que integre o Estatuto Editorial do PÚBLICO ou a lista de deveres da sua redacção, mas é a adopção desse conceito como meta ou paradigma que esperarão os leitores perante não só a prática editorial deste jornal mas também, por exclusão de partes, os seus “Princípios e normas de conduta profissional”, ao estipularem que “o jornalista do PÚBLICO” só “não está obrigado à neutralidade quando estão em causa valores fundamentais da vida em sociedade” (como os “relativos aos direitos humanos”) e “deve distanciar-se dos factos e das estórias que eles contêm”.
A propósito dos comentários feitos pelo jornal à recente reeleição de José Sócrates como secretário-geral do PS, com mais de 96 por cento dos votos expressos, o leitor Armando Moura Pinto acha que a isenção para com o chefe do governo não foi respeitada. E isto porque haveria um critério de dois pesos e duas medidas na secção “Sobe e desce”, da última página da edição em papel: “Sócrates desce porque ganhou ‘à Coreia do Norte’, parecendo ser culpado por não haver opositor e também por outras moções não terem alcançado os votos necessários para serem discutidas em congresso. E, remata-se, ‘isto é triste num partido que se diz democrático’, o que permite a conclusão de que, para o PÚBLICO, o não é. Mas Hugo Chávez sim, esse é dos nossos (do PÚBLICO, claro). Porque ‘ganhou [o referendo que lhe permite perpetuar-se no poder como presidente da Venezuela] de forma limpa’, ‘apesar do recurso aos meios do aparelho do Estado’. Porreiro, pá! Afinal é assim que se agrada ao PÚBLICO. Pergunto: isto tem a ver com alguma campanha contra José Sócrates? Só mesmo a minha má vontade permitiria tirar tal conclusão”.
Os leitores que não leram esta secção nos dias 16 e 17 de Fevereiro já adivinharam que, devido aos escrutínios que ambos venceram, aparecem aí, respectivamente, Sócrates com seta para baixo e Chávez com seta para cima. Também Octávio Senos Miranda se indignou pelo tratamento dado a Sócrates na última página: “Fiquei perplexo (...). Que esperavam que sucedesse quando há só um candidato? Votações de 60%? (...) Se querem atacar José Sócrates não faltam motivos realmente importantes. Porquê entrar por caminhos fáceis, de pronta adesão, mas muito pouco sérios? Porém, o que realmente me preocupa, num jornal que uso para me manter informado, é a parte final do ‘Sobe e desce’: ‘Daria para celebrar se, ao mesmo tempo, os militantes tivessem dado oportunidade aos apoiantes de Fonseca Ferreira e António Brotas de levarem as suas moções à discussão em congresso’. Será que o PÚBLICO admite, aceita e aconselha manipulação das votações? Aceita o PÚBLICO chapeladas? Considera o PÚBLICO que deviam ter sido dadas ordens a alguns militantes do PS para votarem em moções que não apoiam? Com certeza que não, mas lá que parece, parece...”
Haverá um preconceito no “Sobe e desce” contra Sócrates? O provedor reviu a secção desde 1 de Outubro do ano passado até ontem e, pela amostragem, pareceu-lhe equilibrado o conjunto de referências ao primeiro-ministro: seis setas para cima e sete para baixo (o presidente Cavaco Silva ficou “neutro” no mesmo período, com cinco setas ascentes e tantas outras contrárias). Mas a questão que levanta Armando Moura Pinto merece ponderação, porque não se pode comparar o grau de democracia permitido por Chávez na Venezuela com o que existe no seio do PS. E também foi estranho (como aliás assinalaria o mesmo leitor) que, ao contrário do habitual na secção, o comentário sobre Sócrates não tenha sido assinado, vinculando assim todo o jornal.
Daí o pedido que o provedor fez ao director do PÚBLICO para comentar estas reclamações. José Manuel Fernandes começou por justificar a existência da secção: “Secções com ‘setinhas’, como o ‘Sobe e desce’, são secções de opinião, muito subjectivas, potencialmente polémicas, mas que por serem controversas são também muito apreciadas pelos leitores. A manutenção desta secção já foi debatida por várias vezes (...), mais por a selecção ser muitas vezes aleatória e demasiado discricionária do que por suscitar polémica ou resultar de avaliações contraditórias de quem assina os pequenos textos. Tem valido o argumento de que preferimos o risco de cometer alguma injustiça e suscitar polémica, ou se se preferir a noção de que num jornal é necessário sempre algum sal e pimenta, mesmo que nem sempre os condimentos pareçam, de acordo com as diferentes sensibilidades, muito bem distribuídos. (...) A regra no jornal é todas as secções deste tipo saírem assinadas, o que não sucedeu [neste caso] por lapso.”
Quanto aos comentários sobre Sócrates e Chávez, defende José Manuel Fernandes: “Sem entrar na discussão das opiniões em concreto e do sentido das setas, gostaria apenas de notar que os ângulos de abordagem eram diferentes: numa avaliava-se o grau de pluralismo interno no PS; na outra o resultado de um referendo muito disputado. Comparar o sentido das setas como se estas representassem uma comparação directa entre José Sócrates e Chávez não me parece que faça sentido, nem era intenção de quem escreveu as notas. (...) De forma alguma aquelas duas notas podem ser lidas como uma preferência editorial do jornal por Chávez por comparação com José Sócrates Só quem não leu (ou prefere esquecer o que leu) os múltiplos editoriais do jornal sobre o regime venezuelano pode pensar que colocamos no mesmo patamar a nossa democracia liberal, com os seus defeitos, e os nossos dirigentes, igualmente com os seus defeitos, e o autocrata populista de Caracas”.
Há porém leitores que encontram na conjugação de comentários deste tipo com investigações ao passado profissional, político e até pessoal de José Sócrates a manifestação de uma campanha que estaria a ser movida por este jornal contra o primeiro-ministro, hipotecando assim a isenção que o PÚBLICO se obrigaria a respeitar. “Campanha negra”, como diria o próprio Sócrates, que já passou a explorar este cenário em busca de dividendos políticos, como no congresso socialista que no fim-de-semana o consagrou em Espinho – não mencionou explicitamente este jornal, que porém estava abrangido pelo seu ataque contra os órgãos de informação e a favor de uma “liberdade livre da infâmia, da calúnia e do insulto”. No caso concreto do PÚBLICO, aos casos da licenciatura, da assinatura de projectos de edifícios na Guarda e do Freeport (este não iniciado nestas páginas), veio há dias juntar-se o da aquisição, por um preço na escritura alegadamente abaixo do valor de mercado, do apartamento onde reside o líder socialista (“Destaque" da edição de 20 de Fevereiro).
Reagiu um leitor anónimo logo no mesmo dia: “Não posso deixar de lavrar o meu protesto veemente pela sórdida campanha que esse jornal está a levar a cabo contra o primeiro-ministro, exemplificada pela 'notícia' sobre os valores de transacção dos andares no prédio onde mora. Se o PÚBLICO tem alguma coisa de concreto a noticiar, que o faça; se não tem, então que pare a campanha de intoxicação da opinião pública. O PÚBLICO pretende ser um jornal de referência de quê?” E a leitora Maria Luiza Sarsfield Cabral, que já antes se queixara ao provedor da cobertura do jornal ao caso Freeport, considerou agora: “A campanha do PÚBLICO contra o primeiro-ministro continua, como se pode ver pelas confusíssimas páginas acerca da compra da casa de José Sócrates (...) Seria lamentável que, em nome do combate à corrupção, se estivesse a corromper o próprio jornalismo...”
Sérgio Brito foi mais específico, apontando supostas incongruências nos dois quadros publicados com preços de escrituras de vários apartamentos no mesmo edifício que o de Sócrates e criticando: “Doutro lado, quando se referem ao valor patrimonial de 2006, não focam – porque não sabem – se se trata do valor inicial fixado pelas Finanças corrigido pelo coeficiente de correcção monetária ou se é já o valor calculado nos moldes actuais pela fórmula respectiva. Qual foi o valor fixado pelas Finanças à data da escritura (ou pagamento da sisa)?”
O provedor pediu uma reacção a Paulo Ferreira, director adjunto do PÚBLICO e um dos autores do artigo, mas não a recebeu em tempo útil. Tendo analisado o trabalho, não encontra porém a intenção persecutória vista por estes leitores. O artigo nada insinua quanto às razões para o diferencial no preço da habitação de José Sócrates, limitando-se a assinalar uma discrepância que careceria de explicação. O provedor não detecta, por outro lado, as incongruências referidas por Sérgio Brito nem acha que a questão da correcção monetária seja determinante, desde que o mesmo critério tenha sido aplicado às verbas associadas a todos os apartamentos analisados.
O escrutínio pelos media de actos passados ou presentes de responsáveis políticos faz parte da cultura democrática e contribui para a transparência e o prestígio do regime. As questões suscitadas pelo PÚBLICO acerca de José Sócrates têm-se revelado pertinentes e de interesse público, por ajudarem a conhecer melhor o seu perfil e os seus actos de governo.
Não basta porém essa manifestação de independência da parte do jornal: será necessário também saber manter a isenção. E aqui introduz-se um elemento de apreciação mais subjectivo, que é o tom genérico com que a figura do primeiro-ministro é tratada nas páginas do PÚBLICO. Será crucial que os seus responsáveis não assumam como “politicamente correcto” que – nos termos de um dos mais ferverosos apoiantes do líder socialista – se deve “malhar” em Sócrates. De alguma forma foi o que se passou com o “Sobe e desce”. Estaline podia ser acusado pela falta de oposição interna – que enviou para o gulag e o cemitério –, mas dificilmente se pode dizer o mesmo das responsabilidades de Sócrates quanto à ausência de alternativas de liderança no PS. Se o PÚBLICO souber manter o tom isento nas matérias sobre o primeiro-ministro, só reforçará a sua credibilidade.
Publicada em 1 de Março de 2009
DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR
Cartas de leitores sobre o "Sobe e desce":
Hoje é a propósito do “Sobe e desce” de 16 e de 17 de Fevereiro. Sócrates desce porque ganhou “à Coreia do Norte”, parecendo ser culpado por não haver opositor e também por outras moções não terem alcançado os votos necessários para serem discutidas em congresso. E, remata-se, “isto é triste num partido que se diz democrático”, o que permite a conclusão de que, para o PÚBLICO, o não é.
Mas Hugo Chávez sim, esse é dos nossos (do PÚBLICO, claro). Porque “ganhou de forma limpa”, “apesar do recurso aos meios do aparelho do Estado”. Porreiro, pá! Afinal é assim que se agrada ao PÚBLICO.
Pergunto: isto tem a ver com alguma campanha contra Sócrates? Só mesmo a minha má vontade permitiria tirar tal conclusão.
Já agora: desta vez ninguém quis assumir a pouca vergonha. Preferiu-se o estilo da carta anónima. O que é muito significativo, sobretudo num jornal que - agora é a minha vez - se diz de referência.
Repito: ser leitor do PÚBLICO é mesmo doença crónica.
Armando Moura Pinto
Ao ler o PÚBLICO de hoje, como faço há anos, fiquei perplexo com a forma como tratam a reeleição de José Sócrates como secretário-geral do PS.
No sector "Sobe e Desce" colocam Sócrates a descer e dizem: "...votação à Coreia do Norte...". Mas que esperavam que sucedesse quando há só um candidato? Votações de 60%? Não seria mais inteligente dizer que só votaram 25393 militantes dos 73104 que o PS tem?
No sector "Blogues em papel", reforçam a ideia de votação à Coreia do Norte, por que não à Cuba ou à Bielorússia? Uma vez já era má informação, agora duas é de mais.
Se querem atacar Sócrates não faltam motivos realmente importantes. Porquê entrar por caminhos fáceis, de pronta adesão, mas muito pouco sérios?
Porém, o que realmente me preocupa, num jornal que uso para me manter informado, é a parte final do "Sobe e desce": "Daria para celebrar se, ao mesmo tempo, os militantes tivessem dado oportunidade aos apoiantes de Fonseca Ferreira e António Brotas de levarem as suas moções à discussão em Congresso". Será que o PÚBLICO admite, aceita e aconselha manipulação das votações? Aceita o PÚBLICO chapeladas? Considera o PÚBLICO que deviam ter sido dadas ordens a alguns militantes do PS para votarem em moções que não apoiam? Com certeza que não, mas lá que parece, parece...
Na minha opinião deve o PÚBLICO ser mais cuidadoso naquilo que publica.
Octávio Senos Miranda
Explicações do director do PÚBLICO:
Secções com “setinhas”, como o “Sobe e desce” da última página do jornal, são secções de opinião, muito subjectivas, potencialmente polémicas, mas que por serem controversas são também muito apreciadas pelos leitores.
A regra, no jornal, é todas as secções deste tipo saírem assinadas, o que não sucedeu na edição de segunda-feira (desce de Sócrates) por lapso. Havia, de resto, outra falha, pois a regra é que se indica a página onde vem a notícia a que se refere o pequeno comentário, e também não saiu essa informação. No dia seguinte a secção já saiu devidamente assinada.
Sem entrar na discussão das opiniões em concreto e do sentido das setas, gostaria apenas de notar que os ângulos de abordagem eram diferentes: numa avaliava-se o grau de pluralismo interno no PS; na outra o resultado de um referendo muito disputado. Comparar o sentido das setas como se estas representassem uma comparação directa entre Sócrates e Chávez não me parece que faça sentido, nem era intenção de quem escreveu as notas.
Para terminar: a manutenção daquela secção já foi debatida por várias vezes desde que foi criada, mais por a selecção ser muitas vezes aleatória e demasiado discricionária do que por suscitarem polémica ou resultarem de avaliações contraditórias de quem assina os pequenos textos. Tem valido o argumento de que preferimos o risco de cometer alguma injustiça e suscitar polémica, ou, se se preferir, a noção de que num jornal é necessário sempre algum sal e pimenta mesmo que nem sempre os condimentos pareçam, de acordo com as diferentes sensibilidades, muito bem distribuídos.
De forma alguma aquelas duas notas podem ser lidas como uma preferência editorial do jornal por Chávez por comparação com José Sócrates. Só quem não leu (ou prefere esquecer o que leu) os múltiplos editoriais do jornal sobre o regime venezuelano pode pensar que colocamos no mesmo patamar a nossa democracia liberal com os seus defeitos, e os nossos dirigentes, igualmente com os seus defeitos, e o autocrata populista de Caracas.
José Manuel Fernandes
domingo, 1 de março de 2009
A “sórdida campanha” contra Sócrates
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