domingo, 22 de março de 2009

O insulto e o panegírico

Os excessos no tratamento dado a personagens alvo de notícias podem ser difamatórios ou hagiográficos

O título, sobre a candidatura de Elisa Ferreira, usa sem aspas os qualificativos que ela atribui a si própria

Quando um fait-divers narrado num blogue, como a ocupação alegadamente abusiva de uma cadeira por um ministro de José Sócrates para se sentar num restaurante ao lado do primeiro-ministro, durante a recente deslocação de ambos a Cabo Verde, recebe honras de notícia desenvolvida no PÚBLICO, com chamada na última página (edição da passada terça-feira, dia 17 de Março, com o título “Lugar à mesa de Sócrates cria confusão em Cabo Verde”), temos matéria de reflexão sobre até que ponto se assiste à “bloguização” dos media convencionais, objecto aliás de uma recente crónica de José Pacheco Pereira neste jornal.

O facto é que os órgãos de informação tradicionais já não podem ignorar essa nova e fenomenal forma de comunicação, que reage mais depressa à actualidade, é mais viva e irreverente, dirige críticas acutilantes e originais, não está constrangida pelas regras editoriais do jornalismo e apresenta conteúdos mais apimentados, logo capazes de atrair a atenção pública e roubar audiências aos restantes meios. Prova disso é a tentativa de o PÚBLICO a incorporar na sua edição impressa, na secção diária “Blogues em papel” (pág. 2 do P2).

Mas, tal como se dizia que nem todas as conversas de café merecem impressão em letra de forma, também nem tudo o que os blogues publicam tem dignidade para figurar num jornal. Sobretudo porque nem todos os autores de blogues, que exercem por essa forma o seu direito à liberdade de expressão e informação, conhecem as regras de responsabilidade a que essa mesma liberdade deve obedecer (coisa que os jornalistas já não ignoram). Em particular, aquelas que têm a ver com a preservação de dois princípios de cidadania que estão sempre em risco na comunicação em espaço público: os direitos ao bom nome e à reserva da intimidade da vida privada.

Quando os bloguistas violam esses direitos, o problema é seu, mas quando é um jornal a fazê-lo, ao citar certas passagens de blogues, o problema passa a ser do próprio jornal.

No anterior domingo, dia 15, sob o título “Ministro arrogante”, publicava-se na “Blogues em papel” uma série de considerações ofensivas e gratuitas sobre um membro do actual Executivo – as quais, por razões óbvias, o provedor se abstém de aqui reproduzir.

Alguns leitores não deixaram de reclamar. Interrogou António Vieira: “Porquê divulgar, ampliando, esta série de insultos? Aprova o PÚBLICO este estilo de linguagem? Considera o jornalista que é legítimo discordar insultando? Acha o Provedor que o jornal cumpre um papel pedagógico divulgando práticas destas? Qual o valor de opinião assim expressa que justifique a sua divulgação? (...) O PÚBLICO não prestou um bom serviço aos seus leitores e ao País com esta citação”. E António Vaz Carneiro acrescentou, sobre “um texto que, pela sua agressividade insultuosa, boçalidade e ódio, não pode nem deve caber nas páginas de um jornal de referência”: “Já não basta transcrever textos anónimos, como são os da blogosfera, com todos os problemas que isso traz – nomeadamente a sua natural amplificação mediática. Deseja-se apenas que uma discussão política tenha o mínimo de decência para não estarmos sujeitos a este tipo de insultos soezes e odiosos. Quanto mais não seja, por uma questão pedagógica. Afinal, qual é o critério de selecção dos textos dos blogues?”

O critério é simples: “No P2 temos por regra não publicar blogues claramente insultuosos”, explica a jornalista Joana Amado, uma das responsáveis pela selecção de posts para a secção. Que aconteceu, então? “No caso em concreto – esclarece a jornalista –, o blogue não deveria ter sido citado. Foi um erro (infelizmente não o primeiro, mas tentaremos que seja o último), pelo qual pedimos desculpa aos nossos leitores”.

O provedor também já tinha reparado não ser a primeira vez que o problema se manifesta, pelo que se interroga sobre se a redacção do PÚBLICO possui consciência da gravidade de um erro destes: entre quem faz a selecção de posts para publicação, nem toda a gente parece conhecer exactamente as fronteiras que devem ser respeitadas. E uma falta deste teor não deveria ser relevada de ânimo leve, pedindo-se desculpas aos leitores mas não à pessoa visada pela difamação.

De sentido contrário, isto é, como peça laudatória de uma personagem, foi, segundo a opinião do provedor, a notícia “Elisa Ferreira, a conciliadora que é capaz das grandes rupturas, avança para o Porto”, publicada na pág. 6 da edição de 19 de Fevereiro, sobre a apresentação da candidatura da visada à Câmara Municipal daquela cidade.

Deve dizer-se que logo o título (por sinal também já criticado por Pacheco Pereira no seu blogue “Abrupto”) chamava a atenção: ou bem que aqueles qualificativos eram da responsabilidade da redacção, e não deveriam existir por serem considerações de natureza opinativa, ou bem que eram ditos por algum entrevistado, e nesse caso deviam figurar entre aspas. O texto informa que é a própria Elisa Ferreira a autoclassificar-se daquele modo, existindo pois logo aqui um problema com a construção do título.

Mas a verdade é que o artigo alinha no mesmo tom encomiástico, assumindo até que a candidata “já deu disso prova” (isto é, da qualidade de “conciliadora” e de pessoa de “grandes rupturas”) e rodeando de um tom épico a sua tentativa de desalojar Rui Rio do município portuense, garantindo que este “terá uma das suas mais difíceis provas de fogo na próximo combate autárquico” (possuirá o PÚBLICO capacidades divinatórias?) e classificando o dia da apresentação de Elisa Ferreira como “o primeiro dia de uma campanha sem tréguas até ao dia dos votos”.

Julgaria o provedor que, para corresponder ao perfil de independência editorial do PÚBLICO, deveria uma notícia deste teor procurar abordar, do ponto de vista político, os prós e contras da candidatura em causa, em vez de apenas elencar aspectos positivos.

Presumindo que o título era da responsabilidade de um editor, o provedor começou por pedir esclarecimentos à direcção, que porém os remeteu para a jornalista autora da notícia, Filomena Fontes. A questão do título acabaria por ficar sem resposta, mas o provedor discutiu com Filomena Fontes. diversos aspectos da construção do texto, tendo os argumentos específicos, pela sua extensão, sido colocados no seu blogue.

Quanto ao tom genérico da notícia, justificou a jornalista ao provedor: “Foi-me pedido um perfil/análise, sobre o percurso profissional e político de Elisa Ferreira, que funcionasse como antecipação do lançamento oficial da candidatura. Não se tratava, assim, de apresentar uma candidatura num contexto de outras que já se perfilaram para a Câmara do Porto. O tom geral de entusiasmo que refere é uma interpretação, que respeito mas veementemente rejeito, assim como me parece igualmente que não faria qualquer tipo de sentido estar a analisar os prós e contras de uma candidatura quando se tratava tão-só de fazer um perfil de apresentação da candidata. Outras candidaturas se seguirão e na altura se fará a caracterização dos candidatos. É assim que se tem feito neste jornal, e certamente que assim decidirão os directores e editores. (...) Tão pouco me pareceria correcto que fossemos à procura de opiniões menos abonatórias, só porque aquelas que ouvimos lhe possam parecer (e esta é matéria de livre interpretação) de teor laudatório ou panegírico. Isso sim, é que seria falta de isenção e distanciamento. O facto é que foram ouvidas fontes de origens diversas, tanto políticas como profissionais”.

Não obsta a que o provedor sinta não ter sido aqui respeitado o princípio do distanciamento do jornalista perante os factos que narra, contido no ponto 9 dos “Princípios e normas de conduta profissional” do Livro de Estilo do PÚBLICO (impressão para a qual também contribui, em grande parte, o título filho de pai incógnito). Trata-se, claro, como diz Filomena Fontes, de “matéria de livre apreciação”, mas é o tipo de apreciação que se pede ao provedor que faça.

CAIXA:

O mistério de uma interrogação

“É muito frequente os títulos das primeiras páginas dos jornais não traduzirem a substância das notícias desenvolvidas no corpo e/ou no interior”, comentou o leitor José Manuel Pereira Bastos. “Sabe-se porquê: devem existir estatísticas sobre a percentagem de leitores que nunca vão além dos títulos dos jornais expostos nos escaparates – a percepção é de que tal percentagem será elevada. Fica assim atingido o objectivo essencial de tal táctica, iludir e desinformar. A falta do ponto de interrogação no título ‘José Sócrates cavaquisou o Partido’ [1ª pág. de 9 de Março], é bem elucidativa: ele já aparece no interior [pág. 3]; na própria capa, o desenvolvimento já desmente aquele título, mas quantos leitores apenas ficaram por este? Está cumprida mais uma das tarefas do diário mais anti-governamental do país”.

O provedor foi verificar e reparou que havia ponto de interrogação no título da primeira página (“José Sócrates ‘cavaquisou’ o Partido?”) chamando para o artigo no interior, disso tendo avisado o leitor, que não se conformou: “Então tive pouca sorte: o exemplar (Edição Porto) que comprei não tem (...). Acha que tem um leitor tão inventivo?”

Só restava pedir esclarecimento a Manuel Carvalho, director adjunto com responsabilidade da redacção do Porto, que ficou tão perplexo quanto o provedor: ”De facto, na Edição Porto a chamada não tem o ponto de interrogação. O que é estranhíssimo. Por regra, as diferenciações na capa fazem-se apenas em relação aos temas e quase nunca sobre a construção dos títulos (a não ser em casos como “Comboio de Lisboa para o Porto...”, que passa para “Comboio do Porto para Lisboa...”). O que deve ter acontecido é uma gralha técnica no envio das páginas ou na sua recepção na gráfica. Porque nesse dia não houve qualquer diferenciação”.

Publicada em 22 de Março de 2009

DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR:

Carta do provedor ao director do PÚBLICO, José Manuel Fernandes

O artigo sobre a candidatura de Elisa Ferreira hoje [19 de Fevereiro] na pág. 6 é um autêntico panegírico. Não se trata apenas da questão do título (já suscitada por Pacheco Pereira no "Abrupto"), em que os qualificativos deviam estar entre aspas, porque são usados pela própria sobre si mesma, mas é todo o tom épico em que a notícia está escrita (por exemplo: "hoje será o primeiro dia de uma campanha sem tréguas até ao dia dos votos"). Não é suposto a editoria política fiscalizar e corrigir a isenção de todos os textos da secção?

Carta da jornalista Filomena Fontes ao provedor

Tive conhecimento de que questionou o director – e este, por sua vez, o editor - a propósito de um texto meu publicado no passado dia 19, na página 6, de apresentação de Elisa Ferreira, a candidata do PS à Câmara do Porto. Estranho os adjectivos que usa e, mais ainda, as insinuações sobre uma ausência de isenção aí contidas. Trata-se de um texto de apresentação da candidata, com dados factuais, que resultaram do cruzamento de várias fontes - nalguns casos adversários políticos.

As interpretações, como é óbvio, são livres e cada leitor terá, naturalmente, as suas. Espera-se, no entanto, que quem tem a função de analisar o faça de forma objectiva, evitando reagir a estímulos exteriores (provável e naturalmente interessados) e sem extrapolar intenções que objectivamente não existem, nem entendo estarem manifestas no texto.

Embora não tenha sido directamente interpelada, estou disponível para trocar algumas ideias consigo sobre isto, até porque é a minha conduta como jornalista que acaba questionada.

Filomena Fontes

Carta do provedor a Filomena Fontes

Além de um tom geral de entusiasmo que não se preocupa, de forma isenta e distanciada, em questionar os prós e contras de uma candidatura, mas fala apenas nos prós (saliento logo à entrada a expressão "currículo que ultrapassa as fronteiras partidárias"), destaco os seguintes aspectos:

1. O título fala dos qualificativos "conciliadora" e "capaz de grandes roturas" como se fossem factos objectivos. Não são: lê-se no texto que são opiniões da candidata sobre si própria, pelo que seria essencial que estivessem entre aspas. Admito que a responsabilidade não seja sua, e por isso não a interpelei directamente, mas sim o director, pois desconheço qual foi o editor responsável pela notícia.

2. A frase da própria candidata sobre nunca ter precisado de "passar por metamorfoses" é assumida na notícia como "todo um programa do seu percurso de vida, profissional e político". Isto não é um perfil, mas um auto-perfil.

3. A frase de um "compagnon de route" de que "não consentiu que pusessem em causa a sua competência profissional" é matéria de opinião, pelo que não deveria ter sido pronunciada anonimamente.

4. Se se fala de António Taveira, devia-se ter dito que foi marido da candidata (segundo creio).

5. A frase "cadinho de relações profissionais no qual se construíram, também, cumplicidades que muitos auguram como preciosas para a difícil campanha eleitoral que se avizinha" carece de explicação sobre quem são esses "muitos".

6. A frase "um Rui Rio que terá um[a] das suas mais difíceis provas de fogo no próximo combate autárquico" é mera futurologia, não comprovada, pelo que não possui valor jornalístico.

7. A frase "a mobilização é total entre os socialistas, que querem demonstrar o apoio inequívoco a Elisa Ferreira" (caixa) parece saída de um comunicado de campanha e não se encontra comprovada pela investigação jornalística.

8. Idem relativamente à frase também futurológica "hoje será o primeiro dia de uma campanha sem tréguas até ao dia dos votos" (caixa), que pode constituir o discurso de um general para mobilizar as suas tropas, mas não o de um cronista que observa os combates à distância.

Esta análise é feita em termos que creio objectivos e decorre da leitura inicial da notícia, muito antes de ser conhecido qualquer "estímulo exterior" (interessado ou não), embora o provedor tenha entre as suas funções reagir a estímulos exteriores.

Joaquim Vieira
Provedor do leitor


Nova carta de Filomena Fontes ao provedor

Como o editor já esclareceu [o provedor não recebeu nenhuma nota do editor], foi-me pedido um perfil/análise, sobre o percurso profissional e político de Elisa Ferreira, um texto que funcionasse como antecipação do lançamento oficial da candidatura. Não se tratava, assim, de apresentar uma candidatura num contexto de outras que já se perfilaram para a Câmara do Porto.

O tom geral de entusiasmo que refere é uma interpretação, que respeito mas veementemente rejeito, assim como me parece igualmente que não faria qualquer tipo de sentido estar a analisar os prós e contras de uma candidatura quando se tratava tão-só de fazer um perfil de apresentação da candidata. Outras candidaturas se seguirão e na altura se fará a caracterização dos candidatos. É assim que se tem feito neste jornal, e certamente que assim decidirão os directores e editores.

Parece-me também que não é elogio - mas é facto - dizer que “o currículo ultrapassa fronteiras partidárias”. Um exemplo referido no texto: Elisa Ferreira, que ideologicamente sempre se afirmou próxima do PS, foi escolhida para presidir à Operação Integrada do Vale do Ave pelo Governo de Cavaco Silva.

A sustentar a citação de que nunca “precisou de passar por metamorfoses” estão os dois momentos que a ilustram: o conflito com José Sócrates quando foi ministra do Ambiente e a ruptura com o presidente da AEP, Ludgero Marques. Duas situações que, à época, foram largamente noticiadas. As quais, diga-se, Elisa Ferreira tem tentado evitar reabrir.

Os vários contactos que estabeleci, para confrontar e contraditar informações, levaram-me a concluir que, quer do lado da maioria PSD/CDS-PP que lidera a câmara, quer do lado do PS, todos encaram a próxima campanha eleitoral como “dura” e “difícil”. Não resultou, como parece sugerir, de minha livre recreação. Foi, também, com base nas informações recolhidas junto de várias fontes do PS (de diferentes sensibilidades) que falei da mobilização do partido. Censura a linguagem utilizada, o que mais uma vez estranho, dado tratar-se de um texto político, que - insisto - antecipa a apresentação de uma candidatura e de uma das principais campanhas eleitorais das próximas autárquicas.

Uma outra nota: António Taveira é referenciado como um entre outros que pertenceram ao grupo da Universidade de Reading, onde Elisa Ferreira se doutorou. Não era então casado com ela. Nem me parece, salvo melhor opinião, que no texto em apreço esse facto fosse, sequer, relevante.

Perante os factos e as questões que coloca, não posso deixar de lhe manifestar a minha perplexidade. É que não me parece que seja possível construir um texto de perfil de forma diferente, muito menos seleccionando aquilo que nos transmitem as fontes. Tão pouco me pareceria correcto que fossemos à procura de opiniões menos abonatórias, só porque aquelas que ouvimos lhe possam parecer (e esta é matéria de livre interpretação) de teor laudatório ou panegírico. Isso sim, é que seria falta de isenção e distanciamento. O facto é que foram ouvidas fontes de origens diversas, tanto políticas como profissionais.

De resto, dizer-se de alguém que não consente que ponham em causa a sua competência profissional não será tanto matéria de opinião, mas antes afirmação de carácter e brio profissional. Também eu não o consentiria, assim como, presumo, igualmente o Joaquim Vieira não o consentirá. E não se trata, obviamente, de opiniões.

Filomena Fontes

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