segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Que é um editorial?

Não seguindo a definição convencional, até que ponto os editoriais do PÚBLICO vinculam o jornal?

O leitor contesta o “cuidado e precisão” que o director atribui ao exército israelita

Esta questão semântica já surgiu antes e vai continuar a surgir. O leitor A. Zózimo levantou na semana finda o seguinte problema: “O director do PÚBLICO continua a sua campanha por Israel (…). Todos temos opinião sobre tudo, e ainda bem. Mas uma coisa é a minha opinião ou de José Manuel Fernandes sobre o que se passa no Médio Oriente desde os anos 40 do século XX, como pessoas, como cidadãos. Outra coisa é José Manuel Fernandes como director de jornal. Por isso, talvez eu tenha o direito de lhe perguntar se considera que é respeitado o estatuto editorial que cito: ‘PÚBLICO é um jornal diário de grande informação, orientado por critérios de rigor e criatividade editorial, sem qualquer dependência de ordem ideológica, política e económica’.

Vem tudo isto, esclarece o leitor, a respeito de dois editoriais assinados por José Manuel Fernandes sobre o mais recente conflito israelo-palestiniano (ainda em curso): “A 30 de Dezembro, quer fazer-nos crer que o problema político da guerra pela terra na Palestina é a alternativa entre apoiar Israel ou deitá-lo ao mar, em linguagem metafórica obviamente. A 5 de Janeiro, tem o descaramento de afirmar: ‘Quem (...) olha para o número de operações e regista o número de vítimas civis só pode considerar que o Exército israelita tem actuado com determinação mas também com muito cuidado e precisão.’ Como é isto possível, quando na altura já se contavam cerca de 700 mortos, entre os quais mais de 200 crianças? Como é possível isto quando já tinham sido bombardeadas três escolas da ONU, com dezenas de mortos, cuja georeferenciação é conhecida do Exército? (…) Depois de ver pessoal médico atingido a tiro na rua, depois de saber que 13, de dezenas de refugiados numa casa, são mortos e deixados no meio dos vivos durante dias, depois de se conhecer as alegações, que tenho dificuldade em aceitar, de que feridos noutra casa só tiveram socorro dois dias e meio depois, por falta de autorização das forças atacantes, depois disto tudo, pergunto-me se José Manuel Fernandes mantém a opinião do ‘cuidado e precisão’ do Exército”.

Tratando-se de um texto opinativo, não cuidou o provedor de solicitar a José Manuel Fernandes resposta às questões factuais suscitadas pelo leitor, até porque a avaliação do “cuidado e precisão” das tropas israelitas pertence ao terreno da subjectividade (logo, da opinião) e levar-nos-ia a um beco. Mas a reclamação levanta um problema mais amplo, que desde sempre tem acompanhado a história deste jornal: pode-se considerar editorial um texto de opinião que, sob esse cabeçalho, surge assinado por um membro da direcção editorial do PÚBLICO, e até que ponto ele vincula o próprio jornal?

Na concepção convencional, o editorial é um texto que procura consensualizar uma tomada de posição dos responsáveis de uma publicação acerca de determinado tópico, pelo que se confunde com a opinião do próprio jornal, não sendo pois assinado por quem o escreveu. Essa é a definição genérica do termo “editorial” contida nos dicionários: “Diz-se do artigo de um periódico que é da responsabilidade da direcção e exprime a orientação desse periódico” (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenação de José Pedro Machado, 1981); “artigo em que se discute uma questão, apresentando o ponto de vista do jornal, da empresa jornalística ou do redactor-chefe” (Dicionário Houaiss, 2003). É claro que a busca de tal consenso implica uma linguagem relativamente anódina e eventualmente inócua, como José Manuel Fernandes afirmou por carta a André Gonçalves Pereira, membro do Conselho Consultivo (CC) do PÚBLICO, quando no seio deste órgão, a propósito de outro conflito internacional, o mesmo tema foi levantado: é “uma opção que me parece empobrecedora, pois conduziria inevitavelmente a textos cinzentos (…), como defendi nas várias reuniões do Conselho do PÚBLICO em que este tema foi tratado”. Outro problema é que nem sempre é possível reunir o consenso de todos os directores, muitas vezes acerca de tópicos de premente actualidade.

O PÚBLICO adoptou assim, desde início, aquilo que, na mesma carta, José Manuel Fernandes designou como “editoriais plurais”, em contraposição aos “editoriais consensuais”: cada membro da direcção assina o seu próprio texto para o espaço do editorial, sem se preocupar em transmitir uma posição colectiva, mas sim a sua própria e exclusiva opinião. Por isso o editorial apresenta-se no Livro de Estilo do PÚBLICO definido de forma algo diferente da dos dicionários: “Texto breve de opinião, claro e incisivo, assinado por um elemento da Direcção editorial”.

Numa resposta a um leitor que em meados de 2006 levantou também este problema, José Manuel Fernandes justificou a doutrina: “Procurar uma espécie de ‘opinião média’ da redacção (…) não é possível ou praticável. Pior: se tal se tentasse fazer (como tentámos episodicamente em 2000, aquando da reformulação gráfica do jornal), depressa cairíamos em textos baços e neutros. Daí que tenhamos regressado à fórmula dos editoriais assinados, mas assertivos e naturalmente mais polémicos, podendo mesmo expressar pontos de vista diferentes conforme os seus autores.”

O provedor (que noutro jornal, aliás, foi protagonista de idêntica experiência) não tem a pretensão de levar o PÚBLICO a alterar o que constitui um dos seus traços genéticos (e que possui inteira liberdade para prosseguir), mas não pode deixar de alertar para alguns mal-entendidos daqui decorrentes, sobretudo porque este conceito se distingue daquele que os leitores mais estão habituados a associar à ideia de editorial.

Na já referida carta a um membro do CC, José Manuel Fernandes defendeu o equilíbrio desta solução ao exemplificar com editoriais de colegas seus da direcção advogando posições diferentes das dele sobre um mesmo tema. Há que reconhecer porém que José Manuel Fernandes, além de por vezes escrever na primeira pessoa do singular (o que não deixa de ser insólito para um editorial), argumenta não só de forma mais aguerrida, parecendo enveredar pelo proselitismo, como os seus textos se orientam globalmente em determinado sentido ideológico (que, no plano da política internacional, se pode considerar como do neoconservadorismo norte-americano, classificação com que talvez ele não concorde, mas que deixou transparecer num artigo publicado em Março de 2003 a propósito da invasão do Iraque: “Este ponto de vista aproxima-me do pensamento estratégico dos neoconservadores. Não tenho problema em o admitir”).

O provedor também não vê nenhum problema nessa filiação ideológica ou noutra qualquer (todos temos alguma), mas acha que merece reflexão o eventual risco da sua identificação, aos olhos de alguns leitores habituados à semântica tradicional, com uma posição do próprio jornal, dada o ardor quase militante que José Manuel Fernandes tem colocado nos seus editoriais. Será que a “lágrima” de alegria mencionada pelo director num editorial a propósito da entrada das tropas norte-americanas em Bagdade, em 2003, que comparava aos acontecimentos de 25 de Abril de 1974 em Portugal, não terá comprometido o PÚBLICO num certo posicionamento perante a questão iraquiana (apesar de tal não transparecer na cobertura jornalística dessa série de eventos)? Poderíamos, nesse caso, estar no terreno da “dependência ideológica” levantado na reclamação inicial?

Os equívocos aumentam na medida em que, já no passado, José Manuel Fernandes tem optado por defender certas posições (“mais fortes e pessoais”, como explicou na carta mencionada) não em editorial mas em textos de opinião publicados à parte (como aquele em que se identificou com os neoconservadores). Esta prática pode induzir nos leitores a convicção de que, se tais textos aparecem sem indicação de editorial, se destinam a não comprometer o jornal da mesma forma que os editoriais (muitas vezes com linguagem igualmente “forte e pessoal”) comprometerão.

Acerca do carácter “baço e neutro” que os editoriais desapaixonados terão, convirá também sublinhar como perfeitamente natural e admissível que, ao lado, um director mantenha uma coluna de opinião (regular ou não) onde as suas posições assumam um carácter mais pessoal e, eventualmente, mais radical.

O provedor não possui, pelas razões expostas, qualquer recomendação a fazer nesta matéria, mas entende ser seu dever alertar para estas ambiguidades e dizer que julga existir espaço para uma solução mais clarificadora.


CAIXA:

Sim, é possível

O PÚBLICO tem dito e repetido, sem para o efeito invocar qualquer fonte, que o PCP copiou o seu actual slogan “Sim, é possível uma vida melhor!” do da campanha eleitoral de Barack Obama, “Yes, we can”. De facto, um pode ser a tradução do outro, mas já em 27 de Dezembro um leitor anónimo alertava o provedor: “Não me parece nada normal que insistam que o slogan do PCP para o início deste ano seja inspirado na campanha de Obama. Basta uma breve consulta ao Google e percebe-se de imediato a origem do mesmo slogan. Este vem da Conferência Nacional do PCP que se realizou em 2003 (…). O slogan era ‘Sim, é possível, um PCP mais forte!’. Eu ainda vou acreditando que ‘sim, é possível’ alguma decência neste país e na vossa classe profissional”. Entretanto, a reincidência na comparação, na notícia “PCP lança campanha com lema de Barack Obama”, publicada na pág. 7 da edição da passada sexta-feira, levou a novas reclamações. “Em 25 de Outubro de 2004, o PCP já tinha apresentado uma frase de campanha que, concretamente, dizia: ‘Sim, é possível. Melhores salários. Mais segurança’”, escreveu Lélio Fidalgo. “Provavelmente o(s) autor(es) desta notícia ouviram, aquando do último Congresso do PCP, alguém dizer semelhante asneira, repetiram-na mas não cuidaram de saber se havia alguma verdade nessa afirmação”. E acrescenta André Levy: “O mais correcto cronologicamente seria que Obama se havia inspirado num lema do PCP, o que é tão absurdo como o PÚBLICO implicar que Jerónimo de Sousa se pode ter inspirado no lema do Presidente-eleito do EUA. Implicar a precedência do lema de Obama é um erro, facilmente provado, e uma implicação fraudulenta do PÚBLICO aos seus leitores, que importa corrigir. Pelo rigor jornalístico”.

Publicada em 11 de Janeiro de 2009

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