Alguns leitores sentem-se chocados por certos “monólogos” da vagina... e do pénis surgidos no PÚBLICO. Até onde deve ir o jornal?
Ninguém se escandalizaria se a pág. 1 do PÚBLICO de 3 de Setembro inserisse a fotografia frontal do David de Miguel Ângelo mostrando toda a figura na sua esplendorosa nudez. Mas os editores optaram por seleccionar apenas a genitália, ampliando-a à largura total da capa. “Espero que na capa do PÚBLICO seja hoje publicado o quadro de [Gustave] Courbet L’Origine du monde [A origem do mundo], desafiou logo a seguir a incomodada leitora Stella Gaspar da Silva, que para não restarem dúvidas anexava uma reprodução da obra do pintor realista francês (e cujo desejo fica aqui satisfeito).
Claro que a fotografia não era de actualidade (pode estar o mundo descansado: nada aconteceu à escultura orgulhosamente guardada por Florença), mas apenas ilustrativa, acompanhando o título “Instabilidade amorosa dos homens é genética, diz novo estudo sueco”, que remetia para o interior. Insinuando haver na escolha uma agressiva afirmação de domínio masculino (embora o provedor julgue saber que a opção foi de uma editora), Stella Gaspar da Silva especula sobre a notícia que deveria acompanhar a pintura de Courbet: “Sugiro: ‘Não foi descoberto nenhum gene que leve compulsivamente a mulher a arrumar a cozinha – e pur si muove, isto é, arruma-a.’ Quanto a mim, fiquei feliz de saber que foi cientificamente provado que é por um puro e exacto movimento pré-determinado pelo ADN que os homens arfam até à exaustão do orgasmo tendo previamente ‘escolhido/sido obrigados a escolher’ (mas isso é outra descoberta mais antiga) a fêmea que mais feromonas deixa como rasto”.
Mas para a leitora não era esse o problema de fundo: “Outra questão seria saber se também é compulsiva a escolha do que é realmente relevante para pôr na 1ª pág. de um jornal (...). Vocês lá sabem o que merecem, mesmo que compulsivamente...” E não desarmava: “Não é o vosso Livro de Estilo que diz que não se deve retirar do contexto uma frase de um entrevistado? Deviam saber que também se não deve retirar um pormenor de um quadro – se potencialmente é ofensivo para quem o disse também o pode ser para quem o pintou. E de certeza há por aí na redacção homens que ficariam felizes de ver publicado na 1ª pág. o seu ‘mais que tudo’, digo o seu (deles) pénis. Com ou sem identificação...”
Estando sob uma manchete que dizia “Prisão de Paulo Pedroso obriga Estado a pagar a maior indemnização de sempre”, a imagem poderia ainda, adicionalmente, suscitar uma leitura mais perversa, que não escapou a A.J.M. Quintela: “É uma capa que gerou alguma confusão, porque a fotografia é imediatamente ligada a Paulo Pedroso. No dia em que foi publicada pareceu-me uma infeliz coincidência. Ao ler o editorial do dia seguinte e constatar nova referência a Paulo Pedroso, concluí que a capa nada tinha de ingénuo e foi pensada para associar e chamar”. (Aqui já pareceu ao provedor descabida a ligação, mas no primeiro dia teria sido de facto preferível evitar o que, na hipótese mais benigna, não terá passado de coincidência).
Combinar pudor e liberdade de expressão é uma circunstância inerente à civilização. O alargamento dessa liberdade tem sido conquistado em grande parte por protagonistas que ousam romper as barreiras normativamente impostas em cada época, desde o Marquês de Sade aos casos clássicos do século XX envolvendo por exemplo Ulysses, de James Joyce, O Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence, ou Lolita, de Vladimir Nabokov.
Numa sociedade aberta como a portuguesa, onde o valor da liberdade de expressão e informação está constitucionalmente salvaguardado, os órgãos de informação não estão sujeitos a esse tipo de constrangimentos policiais ou judiciais (no caso sobre os órgãos sexuais), devendo decidir por eles próprios, em função da relação com a sua audiência, quais os parâmetros que, nesse campo, limitam a matéria que editam. Tais parâmetros variam de um meio de comunicação para outro, embora na maior parte (como no PÚBLICO) não estejam definidos e sejam deixados à sensibilidade dos editores do momento.
Uma vez por outra, haverá um leitor deste jornal a sentir-se ofendido por achar que se pisou ou foi ultrapassado o risco. Já fora o caso de António Cândido Miguéis, que reclamou acerca do título da capa de 17 de Maio “Gays: Lisboa já tem um clube privado de sexo”, abordado pelo provedor na sua crónica de 8 de Junho. Outros protestos têm entretando sido recebidos.
A mesma Stella Gaspar da Silva haveria de reclamar de novo contra as fotos publicadas quase um mês depois na reportagem “O Lux de pernas abertas” (págs. 8/9 do P2 de 1 de Outubro), sobre a celebração do 10º aniversário da abertura daquele bar lisboeta, e onde se via os convivas a entrarem nas suas instalações através de uma gigantesca vagina simulada na porta, com as correspondentes pernas estendidas para o meio da rua (não, o strip-tease fotografado por João Cutileiro e surgido na pág. 1 do dia seguinte não motivou qualquer objecção). “Nada me move contra a exposição da genitália, quer masculina quer feminina, considerando ambas tão válidas quanto o rosto daqueles a que pertencem... quiçá até mais reveladoras”, reincidia a leitora. “Mas considero que como notícia de 1ª página [que não era neste caso, para descanso dos guardiães dos bons costumes], é esta mais típica dos jornais grátis com que nos inundam – só que por estes não pagamos!”
A leitora enviou mesmo um e-mail a jornalistas do PÚBLICO onde escrevia: “A pergunta que fica não é se no público em geral e no PÚBLICO em particular há uma clara obsessão voyeurista/exibicionista (claro que há), mas sim se não há uma certa confusão entre o que é um jornal de referência e uma revista tipo Caras. É que a Caras eu não compro e o PÚBLICO... acho que vou deixar de comprar”. (Seguiam-se alguns termos e considerandos impublicáveis, mesmo numa perspectiva muito tolerante).
Também o leitor António Coelho se sentiu chocado, não propriamente pelos monólogos fotográficos da vagina: “Não acho digno de um jornal ‘normal’ essa publicidade descarada a um bar que faz 10 anos... Não pretendendo que cada noticia que vem no PÚBLICO me interesse, acho no entanto descarado que me façam pagar um jornal onde há duas páginas de publicidade camuflada em conteúdo redactorial. Se pago tenho o direito de encontrar notícias que tenham passado o (já muito ténue) filtro da deontologia da profissão de jornalista. Sendo as duas páginas da noticia tão estranhas, li até ao fim, e fiquei a saber [de] uma nova entrada para o bar... uma vagina! (...) Senti-me enganado. Se é para vender, então deixem de pretender ser jornal de referência, e assim não há mal-entendidos. Por mim sei o que farei: passo a agarrar nos jornais gratuitos – eles são honestos (...) e nós, leitores, sabemos qual é a linha: vender cérebros abertos à publicidade”.
Outra matéria a suscitar protestos foi o artigo "Não preciso de ter um pénis para ser um homem", publicado (com foto explicitamente demonstrativa da afirmação) nas págs. 4/5 do P2 de 23 de Setembro, incluindo chamada na pág. 1 com o mesmo título. Paulo Nuno Magalhães expressou o seu “vivo repúdio” por esta “entrevista feita por telefone a uma estrela do cinema porno (...), que, ficamos a saber, era há 15 anos uma mulher, hoje é um homem, se bem que não operado”. Pormenoriza o leitor: “Para além do duvidoso interesse da matéria em causa, e do relevo que esta teve nas páginas de um jornal de referência, chocou-me vivamente a fotografia. (...) A crueza pornográfica desta é em si mesma de uma violência estética e mau gosto intrínseco que não esperava ver nas páginas do PÚBLICO.”
Acrescentou José Maria Eça de Queiroz (julga o provedor que não o próprio autor de Os Maias comunicando do além-túmulo) sobre o “infelicíssimo artigo”, que lhe criou “dúvidas sérias” quanto a “manter a fidelidade ao jornal”: “Não sou tão conservador que não aceite não só essa profissão como a aberração do senhor barbudo que exibe orgulhosamente uma vagina (...).
Uma coisa é certa: a fotografia de grande formato (...), para lá de um mau gosto patente, é realmente pornográfica no pior sentido (...). Na minha inocência de cidadão mediano sempre achei que este tipo de notícia era veiculada pelo inominável Jornal do Incrível, com o qual nunca gastei um centavo. (...) Mera ilusão, como o vosso jornal me provou.”
Ao provedor não compete fazer julgamentos na matéria (que seriam uma interferência na liberdade de publicar por parte do jornal), menos ainda elaborar normas. Quando muito, apenas definir os termos da equação que aqui se coloca. Sendo que a liberdade nunca é total, pois implica responsabilidade, e portanto limites, importa que os responsáveis do PÚBLICO possuam um entendimento sobre um tema acerca do qual o Livro de Estilo é omisso. O critério é subjectivo e tem a ver com muitos factores: relação com os leitores, sensibilidade do público, valores morais, bom gosto, etc. Romper barreiras será positivo, alienar leitores nem tanto.
CAIXA:
As costas largas da ex-ministra
A manchete "Falta de dinheiro e de funcionários está a asfixiar a rede de museus”, da edição de 6 de Outubro, com o respectivo destaque inserido nas págs. 2-5, suscitou a Manuel Pais um comentário: “Não me parece nem curial nem esclarecedor do objecto da notícia que, no decurso de uma reportagem que mereceu uma cuidada preparação (...), não tenha sido incluída nenhuma declaração do actual ministro da Cultura [José António Pinto Ribeiro] ou do seu gabinete (...). Tanto mais estranho quanto a figura do responsável máximo da tutela surge com uma referência – com fotografia! – à anterior responsável [Isabel Pires de Lima] – passados cerca de nove meses. Confunde-me o fundamento da decisão: nove meses é pouco tempo para dispensar a referência à anterior responsável e é, simultaneamente, pouco tempo para responsabilizar o actual ministro?”
Explica a jornalista Alexandra Prado Coelho, responsável pelo trabalho: “Contactámos o gabinete do ministro da Cultura, mas o seu assessor disse-nos que, sobre o assunto, devíamos falar com o director do Instituto dos Museus e da Conservação, Manuel Bairrão Oleiro”.
É claro que a recusa do actual ministro em prestar declarações não deve impedir a publicação do trabalho jornalístico, mas há pertinência nas palavras do leitor quando observa que são atiradas responsabilidades para quem já saiu em Janeiro do cargo, poupando-se o seu sucessor até de ser referido num dossiê tão completo.
Publicada em 9 de Novembro de 2008
DOCUMENTAÇÂO COMPLEMENTAR
Carta do leitor António Coelho:
Não acho digno de um jornal "normal" essa publicidade descarada a um bar que faz 10anos...
Ficámos enfim a saber que esse tal Lux-Frágil faz dez anos. Não pretendendo que cada noticia que vem no PÚBLICO me interesse, acho no entanto descarado que me façam pagar um jornal onde há duas páginas de publicidade camuflada em conteúdo redactorial. Se pago tenho o direito de encontrar noticias que tenham passado o (já muito ténue) filtro da deontologia da profissão de jornalista. Sendo as duas (2)páginas da noticia tão estranhas, li até ao fim, e fiquei a saber que a putativa Fernanda e a putativa Rosalina tinham encontrado o putativo Rui e o que é que ele nos tinha preparado? Uma surpresa - uma nova entrada para o bar... uma vagina! (os nomes devem ser outros mas já os esqueci). Será que é um exercício literário demasiado evoluído para a minha compreensão? Depois de ter lido fiquei com a impressão de só ter lido um monte de disparates/merdas onde falavam de pessoas sem interesse e só conhecidas dos iniciados (ou deveria dizer introduzidos?) membros duma sociedade onde reina a vacuidade, onde a aparência varreu o ser.
Senti-me enganado. Se é para vender então deixem de pretender ser jornal de referência e assim não há mal entendidos. Por mim sei o que farei: passo a agarrar nos jornais gratuitos - eles são honestos e não há mal-entendidos - dizem claramente o que são e nós leitores sabemos qual é a linha: vender cérebros abertos à publicidade.
António Coelho
Carta do leitor Paulo Nuno Magalhães:
Venho por este meio, como fidelísssimo leitor do PÚBLICO desde a primeira hora, expressar o meu vivo repúdio pelo texto contido no suplemento P2 da passada terça-feira, dia 23 de Setembro.
O trabalho em questão - com chamada de primeira página com o sugestivo título de "Não preciso de ter um pénis para ser um homem" - consiste numa entrevista feita por telefone a uma estrela do cinema porno radicada no Canadá, estrela essa que, ficamos a saber, era há 15 anos uma mulher, hoje é um homem, se bem que não operado. A filmografia deste senhor consta, ao que percebi, das propostas da edição deste ano do Festival de Cinema Gay e Lésbico.
Para além do duvidoso interesse da matéria em causa, e do relevo que esta teve nas páginas de um jornal de referência, chocou-me vivamente a fotografia ilustrativa do dito artigo. A crueza pornográfica desta é em si mesma de tal violencia estética e mau gosto intrínseco que, como calcula, não esperava ver nas páginas do PÚBLICO.
Paulo Nuno Magalhães
Carta do leitor José Maria Eça de Queiroz
Sou um leitor diário, e fiel, do vosso jornal, e, embora possa discordar aqui ou ali de algumas opções editoriais, nunca deixei de o adquirir (e ler) religiosamente todos os dias.
Barafustei a nível íntímo aquando da mudança de imagem e criação do P2, mas continuei a ser um fiel leitor. Hoje, porém, criei dúvidas sérias se devo ou não continuar a manter a fidelidade ao jornal.
Falo de um infelicíssimo artigo levado à estampa no P2 com chamada à primeira página: "Não preciso de um pénis para ser homem", afirma uma criatura que dá pelo nome de Buck Angel e é apresentada como pornógrafo profissional.
Não sou tão conservador que não aceite não só esta profissão bem como a aberração do senhor barbudo que exibe orgulhosamente uma vagina: é com ele, mas certamente que não é comigo!
Em primeiro lugar, pergunto-me da real importância do Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa. Serão assim tantos? Justifica um noticiário tão sensacionalista?
Uma coisa é certa: a fotografia de grande formato que ilustra o texto acerca do referido senhor(?)/senhora(?), ou lá que raio é aquilo, é para lá de um mau gosto patente, é realmenmte pornográfica no pior sentido do termo.
No principio do sec. XX havia os chamados "Circos dos Horrores", que apresentavam os aleijões mais informes com o intuito de ganhar dinheiro, nos quais nunca faltava a "Mulher Barbada", que, tal com o o especimen que hoje vocês exibem tão orgulhosamente, não passava de uma aberração tal como o bezerro de duas cabeças, apenas tinha mais decoro e não mostrava a vagina como se de um troféu se tratasse.
Na minha inocência de cidadão mediano, sempre achei que este tipo de notícia era veículada pelo inominável Jornal do Incrível, com o qual nunca gastei um centavo, e sempre tive a ideia peregrina de que a chamada imprensa de referência não embarcava neste tipo de sensacionalismo.
Mera ilusão, como o vosso jornal me provou hoje.
Tenho gasto com prazer 90 centimos por dia; no entanto a partir de hoje fico na dúvida se realmente valerá a pena, pois para matérias como a que foi publicada, e com o destaque com que o foi, na minha apreciação a vossa publicação desceu mais que a bolsa de valores neste conturbados tempos.
Tenho realmente pena que uma Direcção Editorial responsável tenha dado lugar à irresponsabiliodade de deixar publicar uma matéria de tão mau gosto e de interesse mais do que duvidoso.
Que fique bem patente o meu protesto, o qual tem o peso e valor de um leitor fiel desde o primeiro numero do vosso jornal.
José Maria Eça de Queiroz
Carta do leitor Manuel Pais:
Na sua edição do dia 6 de Outubro passado, o jornal apresenta uma notícia em destaque na 1º página com o título "Falta de dinheiro e de funcionários está a asfixiar a rede de museus”. O mesmo assunto é destacado nas páginas 2 a 5. Aparece assinado por Alexandra Prado Coelho, com Sérgio C. Andrade e Vanessa Rato.
Não me parece nem curial nem esclarecedor do objecto da notícia que, no decurso de uma reportagem que mereceu uma cuidada preparação - elaboração de um inquérito, o seu envio a 34 museus portugueses e respectivo tratamento; mobilização de três jornalistas seniores; início da fase das entrevistas há, pelo menos, "perto de duas semanas" (p. 4); transcrição de declarações de seis directores de museus nacionais, de uma ex-directora e de um director-adjunto de um museu privado -, não tenha sido incluída nenhuma declaração do actual ministro da Cultura ou do seu gabinete, como se o responsável máximo fosse o director do Instituto dos Museus e da Conservação.
Tanto mais estranho quanto a figura do responsável máximo da tutela - o ministro - surge no decurso da notícia com uma referência - com fotografia! - à anterior responsável - passados cerca de nove meses. Confunde-me o fundamento da decisão: nove meses é pouco tempo para dispensar a referência à anterior responsável e é, simultaneamente, pouco tempo para responsabilizar o actual ministro?
Manuel Pais
domingo, 9 de novembro de 2008
Os limites da decência
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário