Será relevante colocar num título sobre a venda de um imóvel do Estado que Maria de Lurdes Rodrigues estudou nele?
Tender-se-á a ver insinuado na menção à ministra algo que afinal não se desvenda
O título, relativo à notícia principal da pág. 27 da edição do PÚBLICO de 19 deste mês, na secção Local, chamava a atenção pelo carácter insólito: “Estado quer vender colégio da Casa Pia onde a ministra da Educação fez o curso comercial”. Na verdade, Maria de Lurdes Rodrigues não fazia parte desta história, assinada pelo jornalista José António Cerejo (J.A.C.), acerca das regulares transacções imobiliárias de património público, a não ser pela circunstância totalmente marginal de a ministra ter estudado no colégio casapiano que até há dois anos funcionou no edifício agora em leilão (Convento do Desagravo, contíguo ao Panteão Nacional).
O leitor Vítor Moura exprimiu a sua perplexidade: “Não percebi a razão do título nem percebi as razões que levaram o jornalista a referir no texto por duas vezes a frequência do referido estabelecimento de ensino pela actual ministra da Educação (...). O facto parece absolutamente irrelevante. Mas, quando um jornalista refere um facto deste tipo (...) sugere a existência de uma relação e suscita curiosidade. Será que, nas entrelinhas, se sugere que uma escola frequentada por uma ministra nunca deveria ser vendida pelo Estado? É pouco provável. Ou será que apenas nos quer dizer que a ministra andou numa escola comercial? A notícia será um pretexto para dizer que ‘a ministra da Educação fez o curso comercial’, como se lê no título, em vez de num colégio privado suíço? Da Casa Pia, para mais? Há uma coisa que não se pode negar: o texto é exemplar. Raramente se atinge este nível. Terá o director do PÚBLICO alguma coisa a dizer sobre ele? Não quererá felicitar publicamente o seu autor?”
Contactado pelo provedor, J.A.C. admite ter sido assaltado pela dúvida: “Neste caso, como em muitos outros, o título escolhido é muito discutível. Confesso que sou o autor dele e que eu próprio me interroguei sobre a relevância da minha opção. Sucede que não sabia que a ministra lá tinha estudado e achei curioso o facto. É decerto um pormenor lateral à notícia, e por isso talvez não merecesse vir no título. Ao mesmo tempo, porém, fiz um raciocínio que me parece legítimo: se acho piada, é provável que muitos leitores achem também. Foi apenas por isso que decidi assim, e não, como é óbvio, por uma qualquer das várias sugestões mais ou menos deslocadas do leitor. Devo aliás dizer que a referência ao curso comercial só ficou no título para o equilibrar graficamente, uma vez que não gosto de linhas penduradas e deselegantes, como resultaria da expressão ‘Estado quer vender Colégio onde andou a ministra da Educação’, ou outra semelhante e igualmente curta em palavras. Acresce que a insinuação do leitor sobre a minha suposta intenção de desvalorizar o curso comercial que a ministra fez na Casa Pia é completamente infundada, quanto mais não seja porque eu próprio fiz, e tenho muito orgulho nisso, o curso comercial na Escola Veiga Beirão, no Largo do Carmo, em Lisboa”.
E para o jornalista as referências ao curso comercial de Maria de Lurdes Rodrigues “não resultam de uma qualquer intenção de repisar e repetir um facto para apoucar a senhora”: “Resultam apenas de uma regra da minha profissão: a ideia resumida nas primeiras linhas da notícia (lead) dever ser (em princípio) desenvolvida ou complementada no corpo do texto. Não o fiz da melhor maneira? É bem possível! Todos os dias tento fazer melhor”.
Também contactado pelo provedor, o director do PÚBLICO, José Manuel Fernandes, informou: “O título foi discutido na reunião de editores da manhã em que saiu a notícia. A opinião geral foi que se tratava de um aspecto lateral e sem relação de causa-efeito com a notícia. Podia e devia constar do corpo do texto, como curiosidade, mas não se justificava que estivesse no título”.
Essa é também a opinião do provedor. É certo que não há qualquer aspecto a objectar em relação ao recorte técnico da notícia, que para a construção do título obedeceu inclusive à regra do Livro de Estilo do PÚBLICO segundo a qual “os títulos dos textos informativos devem ser sempre inspirados no lead, o que implica o rigor deste.” E também não está em causa tal rigor, pois a ministra frequentou a escola em questão.
O problema é que os media têm pelo menos dois níveis de leitura: aquele mais imediato transmitido pelas meras palavras e um outro mais subtil (ou subliminar) que tem a ver com a disposição, o jogo e a interacção dos diversos elementos que constituem a mensagem: maquetagem, imagens, sons, títulos, sequências noticiosas, associações por proximidade, etc. Foi essa a questão que o provedor já suscitou há três semanas, a propósito de uma fotografia da zona púbica do David de Miguel Ângelo contígua a uma manchete sobre Paulo Pedroso e o caso Casa Pia, com a qual não tinha qualquer relação directa (como, já agora, esse caso também não tem a ver com o de hoje).
Dada a linguagem a que o PÚBLICO habituou os seus leitores, tender-se-á a ler neste título, ou ver nele insinuado, algo que afinal acaba por não se desvendar, o que causou o desconforto do leitor.
A notícia “Portugal não tem registo de erros de medicação que são responsáveis por sete mil mortes anuais nos EUA”, assinada por Catarina Gomes (C.G.) e inserida na pág. 6 da edição de 27 de Outubro, motivou a reclamação de um leitor anónimo por suposta troca de país: “Segundo as próprias palavras da presidente da Associação Portuguesa dos Farmacêuticos Hospitalares [APFH], numa entrevista que ouvi ontem na rádio (...), o número de sete mil mortes/ano está estimado para Portugal e não para os EUA. Aida Batista [A.B.] (...) Quando penso que, por ano, podem morrer 7000 pessoas nos hospitais por erros de medicação, gostaria que tal facto fosse, ao invés de menosprezado num exercício de péssimo jornalismo, trazido para a primeira página”.
Esclarece afinal C.G.: “As informações que o PÚBLICO veiculou são as correctas. O artigo da [agência] Lusa que deu origem a esta notícia (...) foi tendo vários desmentidos ao longo do dia. O PÚBLICO teve que voltar a falar com os implicados. A história inicial da Lusa assentava num erro: A.B. estava de facto convencida de que as sete mil mortes se referiam a Portugal. Acontece que a sua fonte eram números apresentados em 2005 pelo então vice-presidente do Infarmed, Faria Vaz [F.V.], e foram mal interpretados. Tal como o próprio disse ao PÚBLICO, e a outros órgãos, trata-se de números referentes aos EUA. Portugal não tem registos, tal como se diz na notícia, nem sequer estimativas. (...) A Lusa passou ao final da tarde já a falar de 7000 mortos internacionalmente, mas F.V. (...) esclareceu-me que os dados que divulgou são só dos EUA. O dia foi a prova de que a rapidez da informação nem sempre é amiga da verdade dos factos”. De facto
Perante as evidências, C.G. só pode ser elogiada por ter corrigido uma notícia errada – e aliás bastante alarmista para Portugal.
NOTA: A crónica do provedor não se publicará no próximo domingo.
CAIXA:
Respeito pela História
Neste mesmo canto, alertou o provedor na crónica anterior para o pouco rigor por vezes verificado na menção de factos históricos. Atente-se a esta carta da leitora Alexandra Pelúcia, sobre as informações contidas nas págs. 46/47 de 15 deste mês, que, embora de divulgação de uma iniciativa comercial do PÚBLICO, Arte de Portugal no Mundo, constituem matéria editorial:
“Considero admissível a existência de gralhas ou lapsos em qualquer género de publicação, talvez ainda mais numa de periodicidade diária (...). Talvez seja neste âmbito que se possa explicar a divulgação das datas de 1487 e de 1637 para evocar, respectivamente, a passagem do Cabo da Boa Esperança por Bartolomeu Dias e o fim da presença portuguesa no Japão, apesar de, na realidade, os referidos factos terem ocorrido nos anos de 1488 e de 1639. Conhecidos os pârametros de exigência e de qualidade do PÚBLICO, bem como a missão formativa que também o norteia, afiguram-se bem mais desconcertantes, se não preocupantes, outras afirmações veiculadas no texto e no mapa anexo. Assim, o leitor incauto ficou a saber que o descobrimento do Brasil se deveu a Vasco da Gama e não a Pedro Álvares Cabral; que a ilha de Socotorá está localizada no Golfo Pérsico e não perto do Corno de África, na zona de acesso ao Mar Vermelho; e que Afonso de Albuquerque ocupou o reino de Ormuz em 1507, quando apenas levou a cabo uma tentativa fracassada, ficando adiada a concretização desse objectivo até 1515. Em face do exposto, parece-me imperiosa a correcção dos dados junto dos leitores, e sugiro com veemência que, de futuro, seja dedicada maior atenção à redacção e à revisão final de textos, se possível por parte de alguém suficientemente credenciado na matéria.
Por último, estando longe de constituir o motivo principal desta chamada de atenção, diria que é de todo escusado o tom panegírico adoptado pelo mesmo artigo e por outros antes dedicados à mesma colecção, traduzido no uso do adjectivo ‘glorioso’ para qualificar o processo dos descobrimentos e da expansão portuguesa. A importância deste é aferida e reconhecida, objectivamente, pelos impactos profundos que ocasionou a váriados níveis. Neste sentido, tanto a História como o jornalismo deverão evitar a tentação do elogio fácil e rasgado”.
Como Bartolomeu Dias andou duas semanas sem terra à vista em fins de 1487, talvez nem o próprio saiba se passou para “o lado de lá” antes ou depois do réveillon, mas a maior parte das fontes consultadas pelo provedor inclina-se para 1487. Também é um facto que Albuquerque ocupou Ormuz em 1507, apesar de ter sido obrigado a retirar antes da conquista definitiva, oito anos depois. E o desembarque de Vasco da Gama no Brasil parece um claro lapso de quem redigiu, embora devesse ter sido objecto de rectificação em “o PÚBLICO errou”. Fica porém mais este alerta para a necessidade de respeitar o rigor histórico.
Publicada em 30 de Novembro de 2008
DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR
Carta do leitor Vítor Moura:
Gostava de saber as razões que levaram o PÚBLICO a publicar uma notícia assinada pelo jornalista José António Cerejo com o título "Estado quer vender colégio da Casa Pia onde a ministra da Educação fez o curso comercial" (dia 19). Não percebi a razão do título nem percebi as razões que levaram o mesmo jornalista a referir no texto por duas vezes a frequência do referido estabelecimento de ensino pela actual ministra da Educação: “onde a ministra da Educação frequentou o Curso Comercial na década de 60” e “Nas suas instalações chegaram a estudar cerca de 500 alunos, incluindo a actual ministra Maria de Lurdes Rodrigues”.
O facto parece absolutamente irrelevante. Mas, quando um jornalista refere um facto deste tipo, em aparência irrelevante, sugere a existência de uma relação e suscita curiosidade. Será que, nas entrelinhas, se sugere que uma escola frequentada por uma ministra nunca deveria ser vendida pelo Estado? É pouco provável.
Ou será que apenas nos quer dizer que a ministra andou numa escola comercial? A notícia será um pretexto para dizer que “a ministra da Educação fez o curso comercial” como se lê no título, em vez de num colégio privado suíço? Da Casa Pia, para mais? Há uma coisa que não se pode negar: o texto é exemplar. Raramente se atinge este nível. Terá o director do PÚBLICO alguma coisa a dizer sobre ele? Não quererá felicitar publicamente o seu autor?
Vítor Moura
Explicações do jornalista José António Cerejo
Neste caso, como em muitos outros, o título escolhido é muito discutível. Confesso que sou o autor dele e que eu próprio me interroguei sobre a relevância da minha opção. Sucede que não sabia que a ministra lá tinha estudado e achei curioso o facto. É decerto um pormenor lateral à notícia, e por isso talvez não mercesse vir no título. Ao mesmo tempo, porém, fiz um raciocínio que me parece legítimo: se eu acho piada, é provável que muitos leitores achem também.
Foi apenas por isso que decidi assim, e não, como é óbvio, por uma qualquer das várias sugestões mais ou menos deslocadas do leitor. Devo aliás dizer que a referência ao curso comercial só ficou no título para o equilibrar graficamente, uma vez que não gosto de linhas penduradas e deselegantes como resultaria da expressão “Estado quer vender colégio onde andou a ministra da Educação”, ou outra semelhante e igualmente curta em palavras. Acresce que a insinuação do leitor sobre a minha suposta intenção de desvalorizar o curso comercial que a ministra fez na Casa Pia é completamente infundada, quanto mais não seja porque eu próprio fiz, e tenho muito orgulho nisso, o curso comercial na Escola Veiga Beirão, no Largo do Carmo, em Lisboa.
Já agora convém lembrar que o título das notícias mais destacadas, no modelo gráfico do PÚBLICO, é imediatamente complementado com uma “entrada” impressa em letras maiores e que, neste caso, está logo aí a dimensão do negócio que o Estado se propunha fazer. Seria melhor ter ido ai - aos 30 milhões de euros, ou aos dois conventos - buscar a ideia do título?
Admito que sim!
Mas, que diabo? É isso motivo para que o leitor se permita, ironicamente, dizer que “o texto é exemplar”, além de me fazer um processo de intenções que me deixa boaquiaberto?
Nota: as duas referências que fiz no texto à ministra não resultam de uma qualquer intenção de repisar e repetir um facto para apoucar a senhora. Resultam apenas de uma regra da minha profissão: a ideia que é resumida nas primeiras linhas da notícia (lead) dever ser (em princípio) desenvolvida ou complementada no corpo do texto. Não o fiz da melhor maneira? É bem possível! Todos os dias tento fazer melhor; Só espero que o severo leitor que assim me avalia faça o mesmo na sua profissão.
José António Cerejo
domingo, 30 de novembro de 2008
A Casa Pia da ministra da Educação
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