O Livro de Estilo do PÚBLICO não prevê nenhuma excepção ou tratamento diferenciado para a informação desportiva
Em 23 de Abril de 1939, FC Porto e Benfica enfrentaram-se na cidade nortenha num dos mais dramáticos desafios da história do futebol português. Era a última jornada do Campeonato da I Liga, que o FC Porto liderava com um ponto de vantagem sobre os encarnados. O empate bastava por isso à equipa da casa, enquanto os lisboetas estavam obrigados a ganhar. O Campo da Constituição transbordava e muita gente não havia conseguido entrar. A um minuto do termo de um jogo disputado taco-a-taco, o marcador registava 3-3, quando o Benfica obteve o golo que podia dar-lhe o título. O árbitro anulou-o porém, alegando que o autor agarrara um adversário antes de atirar à baliza, e, perante o desespero benfiquista no terreno, o campeonato acabou por ficar nas mãos do FC Porto. Mas a revista Stadium, que nesses tempos anteriores à fundação de A Bola (e, para não ferir susceptibilidades, do Record e de O Jogo), era a bíblia do futebol nacional, publicaria uma foto provando que “o ‘homem que agarrou’ só poderia ter agarrado a sua sombra”. Reacenderam-se os ânimos: na capital, organizava-se uma homenagem à equipa vítima da “injustiça”, enquanto no Porto se acusava a Stadium de “falsificação”, pouco faltando para, nas ruas, se destruir a revista em auto-de-fé.
Depois dos árbitros e das suas mães, os jornalistas desportivos deverão ser as pessoas mais vilipendiadas pelos adeptos do futebol. Num país onde as sensibilidades clubísticas estão à flor da pele, os próprios jornalistas não costumam ajudar a pacificar o ambiente, com os seus julgamentos categóricos acerca do que num jogo está certo e errado, as suas classificações absolutas sobre a actuação dos árbitros e o seu escasso empenho em fazerem o contraditório ao emitirem arrasadoras sentenças sobre os comportamentos no relvado.
Estão aliás no seu direito, à luz da liberdade de expressão. O problema é quando tais atitudes comprometem os estatutos editoriais dos respectivos órgãos de informação, se estes preconizarem a isenção, a equidistância, a comprovação dos factos ou a audição das partes visadas nas notícias. As secções desportivas de muitas redacções parecem um mundo à parte, com os seus códigos distintos dos dos restantes jornalistas. É habitual, por exemplo, ver repórteres condenarem sumariamente decisões dos árbitros em órgãos de informação onde seria impensável fazer-se o mesmo perante as sentenças judiciais.
Um título recente do PÚBLICO, na pág. 35 da edição de 13 de Abril, indignou sobremaneira alguns leitores. Aí se escrevia: “Uma vitória regular do FC Porto com dois golos irregulares”. E a respectiva notícia era desenvolvida no mesmo tom, dos “dois golos irregulares [que] deram a vitória ao FC Porto frente ao Vitória de Setúbal, ontem no Bonfim”: primeiro, “por Lisandro, que, em posição irregular, inaugurou o marcador”; depois, por Mariano, numa “jogada em que o sul-americano ajeitou a bola com a mão sem que o lance tivesse sido sancionado pela equipa de arbitragem”. Em suma, uma ampla vantagem obtida de “forma tortuosa”.
A partir de Bruxelas, o leitor Manuel Leal escreveu logo no próprio dia ao provedor, “surpreendido” e “chocado” pelo título: “Vi o jogo e os dois golos pareceram-me regulares”. E desenvolvia: “Claro que a arbitragem não é uma ciência exacta, e até dois árbitros competentes analisam frequentemente o mesmo lance de formas diferentes. Mas neste caso parece-me que há erro clamoroso do jornalista. E, como não tenho competência especial na matéria, socorro-me dos quatro árbitros internacionais de um diário desportivo que analisam hoje também os mesmos lances (Jorge Coroado, Soares Dias, Rosa Santos e António Rola, em O Jogo [online]): quanto ao primeiro lance, depois de visualizarem as repetições, todos consideraram o golo regular; quanto ao segundo, dividiram-se a meio, dois considerando que houve falta e dois que o golo foi limpo”. Remate do leitor: “E o jornalista não teve pelo menos uma ligeira dúvida antes de ditar a sua sentença e de a destacar em título do artigo? É que espalhou-se ao comprido numa matéria em que deveria ser especialista”.
Colocado antes no PUBLICO.PT, o mesmo relato já havia suscitado não poucos comentários críticos. O que levou o assinante Luís Valente a reclamar junto do provedor: “É inadmissível que, apesar dos imensos protestos dos leitores, o texto online tenha sido mantido inalterado pelo menos durante grande parte do dia, induzindo os menos informados em erro”. E que erro era esse? “Qualquer pessoa que perceba o mínimo dos mínimos deste desporto (e veja as imagens...) consegue ver que é mentira o que o jornalista escreveu e que o primeiro golo foi perfeitamente legal”. Quanto ao segundo, tratou-se de um “lance duvidoso em que até árbitros discordam na análise”.
E o mesmo leitor discorre sobre esta “falha grave” na origem da “notícia falsa”: “Compreendo que noticiar desporto não é tarefa fácil porque, por vezes, o mesmo acontecimento pode ter diferentes interpretações. Nesses casos um jornalista responsável deve ser cuidadoso na análise e falar em dúvidas... (…) Não entendo como, na era do telemóvel e da internet, o jornalista não foi capaz de confirmar as suas impressões antes de enviar o texto que escreveu para publicação”.
Mas é preciso sublinhar que, neste terreno minado dos relatos desportivos, os adeptos podem prender um jornalista por ter cão e por não o ter. Situações existem em que os repórteres dão por válidas as decisões dos árbitros para logo surgirem protestos de leitores. Na notícia “Dois avançados, dois penáltis e o Benfica encontrou a vitória” (pág. 31 da edição de 11 de Fevereiro), sobre um jogo na Luz com o Paços de Ferreira (4-1), o jornalista assumiu a autenticidade dos penáltis de que fala o título e que o árbitro assinalou. O leitor e assinante Antero Simões Seguro contestou porém, dois dias depois, este “jornalismo de sarjeta”, achando “absolutamente escandaloso que [o PÚBLICO] acoberte na sua redacção pretensos jornalistas que não passam de autênticos papagaios do pirata”.
E porquê tamanha veemência (para lá de considerações insultuosas que aqui não se reproduzem)? Quanto ao primeiro castigo máximo: “Para além de não ter havido qualquer penálti, houve sim falta do avançado do Benfica que afasta (empurra) com o braço direito o defesa do Paços. (…) No fim de contas, o SLB ganhou (mais um) penálti fantasma (…), com o mérito e a ajuda escandalosa do [árbitro] Sr. Augusto Duarte, que, impunemente, levou o SLB ao colo para mais uma vitória”. Sobre o segundo: “Outra aldrabice mal contada. Houve, sim, puxões e agarrões de ambos (um ao outro) e se por este motivo é penálti então deveria haver aí dez penáltis por jogo”. Mas há mais: “E então aquele fora de jogo escandaloso arrancado, ainda na primeira parte, ao jogador do Paços de Ferreira, que ficaria isolado com todas as condições para fazer golo, e isto quando o Paços já ganhava por 1-0? O escriba do rei, claro, nem sequer comenta, passando por esta jogada decisiva, e com evidente influência no resultado, como cão por vinha vindimada. Para ele (e para quem ler), simplesmente não existiu”.
Ambas as reportagens se integram no estilo de cobertura das competições futebolísticas adoptado pelo PÚBLICO, e por isso o provedor procurou ouvir o editor de Desporto da redacção de Lisboa, José Mateus, sobre a linha editorial na matéria. Prometida para sexta-feira última, a resposta não chegou a tempo de integrar esta crónica, o que o provedor lamenta.
Duas passagens das cartas atrás mencionadas põem o dedo na ferida. Escreve Luís Valente: “Muitos consideram que estes erros, por surgirem no jornalismo desportivo, são menores. Não faço parte deste grupo. Um jornal, para ser sério e de referência, não pode conter mentiras, muito menos com chamadas ao título! Estejam elas na secção de desporto, local ou política internacional”. O provedor não lhes chamará “mentiras” (já que verdade e mentira em futebol são categorias quase sempre subjectivas, a que recorrem os facciosos), mas sim, pelo menos em certas situações, abusos de interpretação – e quanto ao resto concorda que o jornalismo desportivo não pode ser encarado como género menor, isento das regras da profissão. Quanto a Antero Seguro, considera que “os relatos dos jogos de futebol não são, nem devem ser, artigos de opinião”. Pensamento judicioso, apesar de não ser esse o caso do artigo onde parece criticar, pelo contrário, a ausência de opinião.
O Livro de Estilo do PÚBLICO não prevê, com efeito, excepção ou tratamento diferenciado para a informação desportiva, pelo que também aqui deverão ser respeitados os seus “Princípios Gerais” de elaboração das notícias “da forma o mais imparcial possível” (ponto 2), do “rigor” como “preocupação central” (ponto 3) e de recurso “aos indispensáveis mecanismos de objectividade”, entre eles a “pluralidade das fontes” (ponto 9). De destacar ainda este aspecto, do subcapítulo “Opinião, interpretação, informação”: “A apresentação dos factos não deve ser ‘enviesada’ por forma a sugerir sub-repticiamente uma conclusão resultante da opinião particular do jornalista”.
Recomendação do provedor. Exceptuando os casos da existência de provas videográficas, o jornalista desportivo do PÚBLICO deveria relatar as competições de forma distanciada, evitando julgamentos pessoais sobre as jogadas e baseando-se antes no testemunho de outras fontes. As decisões da arbitragem, embora a respeitar sempre (por uma questão de civilização), não têm de ser havidas por verdades definitivas (ensina-o o Apito Dourado, entre muitas outras ocorrências).
Publicada em 4 de Maio de 2008
domingo, 4 de maio de 2008
Filhos de um jornalismo menor?
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