domingo, 6 de abril de 2008

A Adriana, a Bruna, a Sílvia, as duas princesas e o ditador

Dois casos de anúncios inseridos no PÚBLICO que exploram os limites dos seus critérios de aceitação de publicidade

Os anúncios dizem coisas como estas, terminando com um número de telemóvel: “A ADRIANA SENSUAL – Morenaça 1,70 Busto 40 Corpo Delirante Prazer Total Apart. Hotéis”; “A BRUNA TRINTONA – Simpática Meiga Sensual Descubra mais Apartamento Luxo Deslocação Hotéis”; “A SÍLVIA 38A SENSUAL DOCE – Discreta, simpática, meiga, agradável. Tb desl. Hotéis”; “LISBOA – Amigas, Loira e Morena, 21 Anos, Duas Princesas, 24 H À Tua Espera. Discretas, Hotéis”; “TRAVESTI GULOSA POTENTE – Amor sem pressas, dou-te todinha. Discreto. Chile” (da edição do PÚBLICO de quarta-feira passada, 2 de Abril).

Pelo menos um leitor, António Matias, está chocado com a reiterada publicação deste tipo de publicidade na secção de classificados do jornal, responsabilizando não os seus responsáveis editoriais mas o proprietário: “O Sr. Belmiro de Azevedo devia ter vergonha em permitir, também no seu jornal, as páginas de classificados conotados directamente com a prostituição. É um ultraje à nossa democracia que certos assuntos sejam explorados na ilegalidade com o aval legal de outros que publicitam o que é ilegal!”

É preciso que se esclareça que a prostituição em si (pois é disso que se trata nos anúncios em questão) não é um acto ilegal em Portugal, mas sim o lenocínio, ou seja, a exploração alheia de quem se prostitui. Isto é, nada obsta a que a “Adriana”, a “Bruna”, a “Sílvia”, as duas “princesas” e o seu colega travesti sejam empresários em nome individual, mas a lei já não permite que sejam trabalhadores por conta de outrem. Verifica o PÚBLICO, jornal que editorialmente denuncia quem se desvia da lei, o estatuto laboral desta gente antes de aceitar os anúncios? E se por acaso algum deles não será imigrante ilegal? E se os classificados não são colocados por redes de prostituição? E se essas redes não violam direitos humanos, matéria perante a qual, segundo o seu Livro de Estilo, o PÚBLICO não deve ser neutro?

Fora de moralismos, estamos no limiar da legalidade, zona de fronteira que porém não preocupa o director do PÚBLICO, solicitado pelo provedor a esclarecer a posição do jornal na matéria: “Independentemente do estatuto ilegal da prostituição, desconheço qualquer legislação que proíba o tipo de publicidade a que o leitor se refere. As autoridades que zelam pela conformidade da publicidade com a lei têm sido muito zelosas nos últimos tempos, e nunca fui informado de que tivesse sido levantado um processo ao jornal por causa desse tipo de anúncios. E o Livro de Estilo não os interdita nos seus pontos relativos à publicidade: ‘O PÚBLICO rejeita [...] toda a publicidade cujas características ideológicas e propagandísticas sejam incompatíveis com o estatuto editorial do jornal (apelos à violência; defesa de valores totalitários e antidemocráticos; intromissões na vida privada dos cidadãos; campanhas contra ou a favor de instituições e pessoas, desde que não sejam justificadas por indiscutíveis razões de natureza ética e cívica; referências obscenas; anúncios a produtos cuja nocividade esteja comprovada ou seja, pelo menos, fortemente suspeita; etc.).’ Só eventuais referências obscenas, que por regra esses anúncios evitam, pois transmitem a sua mensagem de forma subliminar, por vezes sugestiva mas sem linguagem que assim se possa considerar face aos padrões em vigor”.

O que não implica, ainda segundo José Manuel Fernandes (JMF), que o jornal aprecie publicidade do género, mas negócio é negócio: “Para ser sincero, o director não aprecia. Nem sequer o PÚBLICO é ‘especialista’ no ramo, pois tem muito poucos anúncios desses comparando com outros jornais. Mas há muitos outros anúncios que posso não apreciar mas que não devo eliminar em nome de uma política do gosto. Editorialmente, o PÚBLICO entende que a legalização ou não da prostituição é um tema a tratar (estamos a trabalhar nele), pois a discussão voltou à ordem do dia em alguns países (sugiro, por exemplo, o debate entre duas feministas na última Prospect, uma favor da ilegalização do sexo pago, outra contra)”.

Tendo o director invocado as normas do PÚBLICO para a rejeição da publicidade, vale a pena mencionar aqui outro caso que decerto terá surpreendido muitos leitores: a publicação pelo jornal de anúncios de página inteira propagandeando a política do coronel Muammar Khadafi, por ocasião da sua visita a Portugal, em Dezembro último. Recuperado pelos países ocidentais no contexto das peripécias ligadas à invasão do Iraque, tendo presumivelmente abandonado a prática terrorista de ordenar a destruição à bomba, em pleno voo, de aviões repletos de inocentes passageiros civis, nem por isso este homem deixou de ser o ditador que sempre foi para o povo líbio, desde que participou no golpe de Estado que o levou ao poder em Tripoli há quase 40 anos. Como compaginar isto com a recusa de publicidade “cujas características ideológicas e propagandísticas sejam incompatíveis com o estatuto editorial do jornal (apelos à violência; defesa de valores totalitários e antidemocráticos, [...])”?

Pelo menos, relata JMF ao provedor, o assunto transtornou a consciência do jornal:

“O tema foi objecto de uma discussão interna onde se revelaram várias sensibilidades. De resto, foi considerado tão sensível que a série de anúncios foi interrompida depois da publicação do primeiro [...], para permitir que a direcção voltasse a debruçar-se sobre o assunto. No final, prevaleceu o seguinte julgamento:

a) Nenhum ponto do Livro de Estilo impede a publicação de anúncios daquele tipo, pois [...] o seu conteúdo, mesmo que considerado detestável pela generalidade da equipa editorial do PÚBLICO, não viola os pontos [sobre publicidade]. A defesa de ideias contrárias às nossas [...] não devia pois ser banida por uma decisão discricionária. [...].

b) O único ponto susceptível de alguma discussão na leitura do Livro de Estilo é se os anúncios em causa eram de propaganda ao líder líbio ou de propaganda às ideias que defende. A leitura feita pela direcção editorial é que eram de propaganda às suas ideias, mesmo que neles surgisse a sua fotografia. Seguindo um critério diferente, teríamos de recusar no futuro, por exemplo, o anúncio aos produtos de uma empresa em que o seu dono aparecesse fotografado. Não nos pareceu razoável, antes um torcer do espírito da norma do Livro de Estilo.

c) O jornal já aceitou no passado e aceitará no futuro textos de opinião com cujas ideias se identifica tão pouco como com as do líder líbio. Fá-lo em nome da pluralidade de pontos de vista e acreditando na senioridade e inteligência dos seus leitores, que sabem raciocinar e pensar pela sua cabeça. E fá-lo em nome da liberdade [...].

d) Pesou ainda na nossa decisão a análise das práticas de grandes jornais internacionais, como o International Herald Tribune [IHT], onde anúncios semelhantes são publicados com alguma regularidade. Após consulta do livro de estilo do New York Times, proprietário do IHT, também verificámos que nele não se previa qualquer regra susceptível de nos levar a recusar aquele anúncio.” (Ler no blogue do provedor as explicações integrais de JMF).

A ideia de invocar o livro de estilo de outro jornal para justificar uma decisão sem cobertura no do PÚBLICO (ou de confundir textos de opinião com publicidade paga) parece ao provedor algo enviesada. E que tal promover uma alteração do Livro de Estilo do PÚBLICO, se ele se mostra prejudicial à prática comercial que se entende dever ser seguida (e que é a “de grandes jornais internacionais”)?

Novas incursões demoníacas

- O leitor Gabriel Silva chama a atenção para a bizarra ausência da Espanha dos quatro mapas com todos os países membros da NATO publicados na pg. 6 da edição de quarta-feira: “A Espanha é assinalada como não fazendo parte da dita organização. Já não digo que tal informação seja da cultura geral (de um jornalista deveria ser, mas pronto...); o que me espanta é que quem fez o mapa não consultou sequer o site da NATO”. É certo que a Espanha aderiu à NATO muito depois de Portugal (membro fundador), mas quando o PÚBLICO nasceu já o havia feito há quase uma década...

- O provedor sentiu um pequeno baque ao ler na pg. 14 da edição desta sexta-feira (4 de Abril) o título “Morreu o último preso da PIDE”. Tendo sido também preso da PIDE, e julgando-se ainda vivo (como muitos outros), pensou por momentos estar o ler o jornal do além-túmulo. O corpo da notícia esclarecia porém que se tratava do “último preso da PIDE a ser condenado em Tribunal Plenário com medidas de segurança”*, o que faz uma diferença. Parafraseando a muito citada reacção de Mark Twain ao ler na imprensa a notícia da sua própria morte, o título terá sido ligeiramente exagerado.

* ADENDA: Trata-se de Licínio Pereira da Silva, que o provedor conheceu aliás na prisão e a cuja memória, numa nota mais pessoal, deixa aqui o seu tributo.

Publicada em 6 de Abril de 2008

DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR

Explicações de JMF sobre os anúncios a Khadafi

O PÚBLICO aceitou vários anúncios colocados por Muammar Khadafi e o tema foi objecto de uma discussão interna onde se revelaram várias sensibilidades. De resto, o tema foi considerado tão sensível que a série de anúncios foi interrompida depois da publicação do primeiro de página inteira, para permitir que a direcção voltasse a debruçar-se sobre o assunto. No final prevaleceu o seguinte julgamento:

a) Nenhum ponto do Livro de Estilo impede a publicação de anúncios daquele tipo, pois estes só são interditos nos casos previsto no ponto 114: "O PÚBLICO rejeita também toda a publicidade cujas características ideológicas e propagandísticas sejam incompatíveis com o estatuto editorial do jornal (apelos à violência; defesa de valores totalitários e antidemocráticos; intromissões na vida privada dos cidadãos; campanhas contra ou a favor de instituições e pessoas, desde que não sejam justificadas por indiscutíveis razões de natureza ética e cívica; referências obscenas; anúncios a produtos cuja nocividade esteja comprovada ou seja, pelo menos, fortemente suspeita; etc.)”. O conteúdo daqueles anúncios, mesmo que considerado detestável pela generalidade da equipa editorial do PÚBLICO, não viola estes pontos. A defesa de ideias contrárias às nossas, mas não enquadráveis nos pontos anteriores, não devia pois ser banida por uma decisão discricionária. Da mesma forma que, por hipótese, se o sentimento da maioria da redacção do jornal e da sua direcção fosse contra o aborto isso não deveria autorizá-la, enquanto o PÚBLICO tiver o estatuto editorial que tem, a banir os anúncios às clínicas espanholas de “tratamento voluntário da gravidez”, mesmo depois de ter sido recebida no jornal uma petição com centenas de assinaturas para que o fizesse.

b) O único ponto susceptível de alguma discussão na leitura do Livro de Estilo é se os anúncios em causa eram de propaganda ao líder líbio ou de propaganda às ideias que defende. A leitura feita pela direcção editorial é que eram de propaganda às suas ideias, mesmo que neles surgisse a sua fotografia. Seguindo um critério diferente, teríamos de recusar no futuro, por exemplo, o anúncio aos produtos de uma empresa em que o seu dono aparecesse fotografado. Não nos pareceu razoável, antes um torcer do espírito da norma do Livro de Estilo.

c) O jornal já aceitou no passado e aceitará no futuro textos de opinião com cujas ideias se identifica tão pouco como com as do líder líbio. Fá-lo em nome da pluralidade de pontos de vista e acreditando na senioridade e inteligência dos seus leitores, que sabem raciocinar e pensar pela sua cabeça. E fá-lo em nome da liberdade, pois acreditamos que esta se defende melhor dando a palavra aos seus inimigos, e combatendo as suas ideias do que banindo-as de forma administrativa.

d) Pesou ainda na nossa decisão a análise das práticas de grandes jornais internacionais, como o International Herald Tribune, onde anúncios semelhantes são publicados com alguma regularidade. Após consulta do Livro de Estilo do New York Times, proprietário do IHT, também verificámos que nele não se previa qualquer regra susceptível de nos levar a recusar aquele anúncio.

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