domingo, 10 de fevereiro de 2008

O PÚBLICO e o privado

Na madrugada do último Natal, um habitante de Alijó (distrito de Vila Real) foi surpreendido pela aparição, à porta da sua casa, do padre da terra, António Aires, vestindo apenas as cuecas, exibindo escoriações pelo corpo e pedindo auxílio para sair de tão insólita quanto embaraçosa situação. Cerca de uma hora antes, após o sacerdote ter assegurado a Missa da Consoada em Sanfins do Douro, e quando se dirigia à sede do concelho para celebrar a Missa do Galo, o seu Mercedes desportivo de dois lugares foi interceptado por desconhecidos, que o retiraram da viatura, o despiram, tê-lo-ão amarrado a uma árvore e levaram-lhe as roupas, sem lhe roubarem nada mais. As autoridades abriram logo investigações, mas não puderam contar com a colaboração do padre, que recusou prestar quaisquer dados sobre os agressores, levando o processo ao impasse.

No dia 26 de Dezembro, a notícia estava em todos os meios de comunicação nacionais, mas o PÚBLICO ia mais longe, apontando para a forte probabilidade de se ter tratado de “um caso com origem passional”. “No concelho, até era comentada publicamente a existência de alegados relacionamentos amorosos com paroquianas”, adiantava o jornal, sublinhando elementos dedutivos como a aparente intenção de humilhar António Aires por quem lhe tirou a roupa ou a sua misteriosa recusa em fornecer informações às forças policiais. Na edição seguinte, o PÚBLICO reincidia: “A pista mais forte aponta para um móbil de natureza passional”. E a 28, no caderno P2, sob o título “António Aires: O padre-treinador a quem sempre ‘puxou a raça’ para as raparigas”, era publicado um perfil de página inteira deste “moderno” sacerdote pós-Vaticano II, amante de carros e futebol, que aí se autodefine deste modo: “Dentro da igreja, sou padre. Cá fora, sou um homem igual aos outros.”

A cobertura do PÚBLICO, a cargo dos jornalistas António Garcias e Pedro Garcias, chocou pelo menos dois leitores, que se sentiram no dever de transmitir a sua indignação ao provedor. Susana Borges foi sintética: “A qualidade das peças deixa muito a desejar, sendo que os senhores Pedro e António Garcias se limitam à emissão de juízos de valor completamente despropositados. Do PÚBLICO esperava um pouco mais de rigor e outro tipo de jornalismo.” E Rui Vilão, assumindo-se como “amigo de familiares do Sr. Pe. Aires de Sousa”, aprofundou as razões da queixa perante esta “excepção relevante” na “sobriedade com que a notícia tem sido tratada: até jornais tidos como populistas e sensacionalistas se têm praticamente limitado à matéria de facto”. O leitor acusa o PÚBLICO de tentar “construir uma teoria baseada nas lucubrações edipianas que ocorrem a qualquer ‘bom cristão’ ciente do preceito disciplinar conhecido por ‘celibato eclesiástico’”, explicitando: “Nada tenho contra a investigação jornalística, claro está, e estou ciente de que este é um assunto difícil, do ponto de vista jornalístico (noticiar o quê, se a vítima não fala?). Mas sucede que a leitura [desses] nacos de prosa (...) me sugere serem estes baseados sobretudo nas convicções íntimas do jornalista. Dizem pois mais sobre a psique de quem escreve do que de quem é retratado e, parece-me, trata-se de matéria mais psicanalítica do que jornalística.” A carta pede assim parecer sobre a “abordagem de folhetim camiliano/freudiano que o PÚBLICO tem adoptado em relação a este assunto”, alegando “que se ultrapassou de forma inaceitável uma barreira que deve ser mantida por qualquer jornal de boa-fé, publicando meras suposições e mexericos, atentatórios do bom nome da vítima (...), e que são vulgarmente designados por calúnias.”

As questões suscitadas pelos leitores são, à partida, pertinentes, na medida em que foi invadida a esfera íntima de um cidadão, o que não só é impedido pelo Estatuto Editorial deste jornal (“O PÚBLICO reconhece como seu único limite o espaço privado dos cidadãos”) como envolve até responsabilidades legais (Art. 192º do Código Penal, sobre a “devassa da vida privada”, concretamente a “intimidade da vida familiar ou sexual”).

No inquérito que, em consequência, o provedor fez sobre estas notícias, apuraram-se algumas daquelas circunstâncias curiosas que fazem com que muitas vezes o jornalismo seja também fruto de uma acumulação de acasos: António e Pedro Garcias não só são irmãos (sendo o primeiro correspondente do PÚBLICO em Vila Real), como, à semelhança do padre Aires, nasceram em Alijó, e encontravam-se na altura a passar o Natal na vila, o que acabou por dar vantagem competitiva ao jornal na cobertura do acontecimento. Explicou Pedro ao provedor que ele e o irmão até conhecem há muito o sacerdote: “Nada tenho contra ele, e durante algum tempo fiz parte da uma tertúlia de amigos em que ele também participava.” Claro que um terreno já frequentado abre portas à pesquisa jornalística: “Com base no conhecimento que ambos tínhamos dele, da existência de informações sobre ameaças que existiam contra ele relacionadas com um alegado envolvimento amoroso com uma mulher da freguesia de Carlão, onde também era pároco, e também do conhecimento directo que pessoas que me são próximas tinham desse relacionamento, tentámos interpretar o sucedido. Antes de escrevermos, contactei com uma fonte da Polícia Judiciária de Vila Real, que também associou imediatamente o caso a razões passionais.”

Não há dúvidas, por outro lado, de que, ao contrário da alegação do leitor quanto a tratar-se de “convicções íntimas do jornalista”, a hipótese apresentada sobre o móbil da agressão está escorada na consulta a fontes locais, não só referidas nos textos como até identificadas. Embora na primeira notícia se diga apenas que “a tese geral aponta para um caso de origem passional” envolvendo um “padre jovem e algo boémio”, na edição seguinte escreve-se que “a pista mais forte aponta para um móbil de natureza passional”, com base nomeadamente em “várias pessoas [de Carlão, que] comentavam ontem que se trata de um ‘assunto de saias’”, e na terceira abordagem cita-se o habitante António Lourenço garantindo tratar-se de “um assunto de mulheres” ou António Heleno, ex-presidente da Junta de Freguesia de Carlão: “Ele gosta de botar a mão no pescoço das meninas. (...) Se calhar, haverá mulheres que, além de padre, o vêem como um homem normal, e sabe como é...”

Não foi feito o contraditório directo com o visado, já que recusou prestar declarações (atitude que não deverá impedir um jornalista de cumprir a sua missão), mas ouviu-se um amigo a declarar que “não acredita que [os incidentes] possam ter tido origem num alegado relacionamento amoroso com alguma paroquiana”.

Resta a sensível questão da intromissão na vida íntima do padre Aires. Apesar das limitações já referidas nesta área, importa sublinhar a admissão de excepções, segundo o Livro de Estilo do PÚBLICO em “situações em que a prática de uma individualidade contradiga frontalmente as suas proclamações públicas ou, tratando-se de titulares de cargos ou responsabilidades públicas, possa vir a ter implicações negativas no respectivo desempenho.” O próprio Art. 192º do Código Penal admite essa possibilidade ao estabelecer que o anúncio público de factos da vida privada de uma pessoa “não é punível quando for praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante”.

Como líder espiritual de uma comunidade, o sacerdote António Aires não é um cidadão anónimo, mas alguém com responsabilidades públicas e, logo, sujeito a um maior grau de exposição à curiosidade dos cidadãos e ao seu escrutínio. Sendo do âmbito da sua esfera íntima, um eventual envolvimento amoroso põe em causa o juramento profissional que fez e com base no qual desempenha as suas funções públicas (que incluem o ensino da disciplina de Educação Moral, Religiosa e Católica na escola básica de Alijó). Aos paroquianos assiste o direito de decidir se uma eventual quebra do voto de castidade do seu padre põe ou não em causa a relação de confiança que com ele estabeleceram. Aliás, nesta matéria, a própria Igreja Católica não separa, nos seus clérigos, a vida pública da vida privada, fazendo depender uma coisa da outra. Por outro lado, a agressão e sequestro de que o sacerdote foi vítima terão causado natural alarme entre a população, sendo do interesse geral o apuramento da verdade dos factos, que de resto constituem crime público.
O provedor entende assim que as notícias saídas no PÚBLICO sobre o caso do padre Aires possuem toda a legitimidade, por se incluírem nas excepções previstas quanto à preservação da vida íntima. Não quer isto dizer que o PÚBLICO revelou a verdade definitiva sobre o assunto, mas sim que foi até onde pôde com base nas informações recolhidas pelos seus jornalistas e sem violar nenhum princípio.

NOTA: A propósito da prática de imputação de notícias às fontes, que ocupou as duas anteriores crónicas desta secção, os jornalistas Vicente Jorge Silva e José Mário Costa voltaram a replicar ao provedor. Dado que a polémica assumiu um tom demasiado especializado, que pode interessar aos profissionais mas menos ao público em geral, o provedor decidiu que ela deveria prosseguir no seu blogue (http://provedordoleitordopublico.blogspot.com), libertando esta página para a abordagem de outros temas.

Publicada em 10 de Fevereiro de 2008

Documentação complementar

Cartas dos leitores:

Peço-lhe que atente nas notícias relativas à agressão de que foi vitima o Pe. Aires no concelho de Alijó na noite de Natal. Permita-me dizer-lhe que a qualidade das peças deixa muito a desejar, sendo que os senhores Pedro e António Garcias se limitam à emissão de juizos de valor completamente desprositados. Do PÚBLICO esperava um pouco mais de rigor e outro tipo de jornalismo.

Susana Borges

Enquanto amigo de familiares do Sr. Pe. Aires de Sousa, não pude deixar de me interessar pelo recente caso de agressão de que foi alvo. Esse interesse é extensivo também ao tratamento noticioso que foi dado ao acontecimento, dificultado, como se sabe, pela dificuldade em obter matéria de facto, dado o black-out por que optou o sacerdote.

Este black-out teria como consequência, como seria fácil de antever, a proliferação de mexericos de toda a natureza sobre as razões da agressão. Para um leitor médio como eu, tal seria uma forma de aferir a idoneidade e a seriedade com que os diferentes meios de informação tratam as notícias, em situações de dificuldade de obter matéria jornalística.

Devo confessar que fiquei muito espantado, pela positiva, com a sobriedade com que a notícia tem sido tratada. Até jornais tidos como populistas e sensacionalistas se têm praticamente limitado à matéria de facto, mesmo quando irrelevante (segundo o meu critério, claro está).

Com uma excepção relevante: há um periódico que se tem destacado pela "investigação jornalística", tentando construir uma teoria baseada nas lucubrações edipianas que ocorrem a qualquer "bom cristão" ciente do preceito disciplinar conhecido por "celibato eclesiástico". Trata-se do PÚBLICO. Nada tenho contra a investigação jornalística, claro está, e estou ciente de que este é um assunto difícil, do ponto de vista jornalístico (noticiar o quê, se a vítima não fala?). Mas sucede que a leitura dos nacos de prosa publicados nos dias 26, 27 e 28 de Dezembro (culminando no artigo com o pitoresco título: "António Aires: O padre-treinador a quem sempre "puxou a raça" para as raparigas") me sugere serem estes baseados sobretudo nas convicções íntimas do jornalista. Dizem pois mais sobre a psique de quem escreve do que de quem é retratado e, parece-me, trata-se de matéria mais psicanalítica do que jornalística.

Venho assim perguntar ao Sr. Director e ao Sr. Provedor em que medida subscrevem esta abordagem de folhetim camiliano/freudiano que o PÚBLICO tem adoptado em relação a este assunto e se não lhes parece, como a mim, que se ultrapassou de forma inaceitável uma barreira que deve ser mantida por qualquer jornal de boa-fé, publicando meras suposições e mexericos, atentatórios do bom nome da vítima (a propósito, também se aplica às vítimas a presunção de inocência?), e que são vulgarmente designados por calúnias.

Rui Vilão

Explicações do jornalista Pedro Garcias:

Este trabalho, que não se tratou de nenhuma história de investigação, foi muito complicado, pelo melindre da questão. Acontece que perante a informação de que o dito padre, quando se deslocava de Sanfins do Douro para Alijó a fim de ir rezar a Missa do Galo, foi agredido, despido e preso a uma árvore, tanto eu como o António Garcias, que é meu irmão e é desde há pouco tempo correspondente do PÚBLICO em Vila Real, decidimos que o assunto tinha relevância pública e que, por isso, devíamos fazer uma notícia. Por acaso, nesse dia, estávamos ambos em Alijó, de onde somos naturais, tal como o padre, que conhecemos há muito tempo. Nada tenho contra ele, e durante algum tempo fiz parte da uma tertúlia de amigos em que ele também participava.

Perante aquela informação, veiculada pelos Bombeiros de Alijó, procurámos averiguar sobre o que se tinha passado. E com base no conhecimento que ambos tínhamos dele, da existência de informações sobre ameaças que existiam contra ele relacionadas com um alegado envolvimento amoroso com uma mulher da freguesia de Carlão, onde também era pároco, e também do conhecimento directo que pessoas que me são próximas tinham desse relacionamento, tentámos interpretar o sucedido. Antes de escrevermos, contactei com uma fonte da PJ de Vila Real, que também associou imediatamente o caso a razões passionais.

O que estava em causa: um padre tinha sido arrancado do seu automóvel, agredido, despido e preso a uma árvore. No mínimo, estávamos perante um crime de agressão e de sequestro, e só a possibilidade de poder ter ocorrido um sequestro, pela sua gravidade, obrigava-nos a fazer a notícia. Tratava-se de um caso grave, com grande impacte na sociedade, e, no entanto, o padre, a própria vítima, não apresentou queixa. O facto de ter aparecido despido indiciava que alguém o quis humilhar e dava ainda mais crédito à tese de que o móbil era de origem passional.

Pela sua posição na sociedade e pela gravidade do caso, o padre tinha o dever de contar às autoridades o que se passou. Mais: enquanto vítima, o padre é também testemunha e, à luz do Códido do Processo Penal, está obrigado a dizer a verdade. Não o fazendo, pode ser constituído arguido. E então, como arguido, pode recusar-se a falar. E nunca ninguém saberá o que aconteceu. Foi exactamente o que aconteceu.

O PÚBLICO podia ter optado pela posição mais fácil, que era dizer que o padre tinho sido vítima de agressões, despido e sequestrado, desconhecendo-se autores e os motivos. Foi isso que a maioria dos jornais fez. Nós fomos mais longe, correndo riscos, é verdade, mas baseados em dados que os outros jornalistas não tinham. Entre não escrever mais nada ou procurar uma causa para o sucedido, assumindo-a, optámos pela segunda. E fizemo-lo também porque amigos e familiares do padre fizeram passar imediatamente a tese de que o padre não falava porque os seus agressores o tinham ameaçado de que se falasse as próximas vítimas seriam a irmã e o pai. E relacionavam essas ameaças com a comissão fabriqueira de Sanfins do Douro, que não estaria contente com a forma como o padre andava a investigar as contas daquela entidade. Ora, como apurámos, isso não era verdade; e, se não tivéssemos avançado com nenhuma tese, as dúvidas recairiam injustamente sobre aquela comissão fabriqueira. Como é dos livros e da própria memória da sociedade transmontana, um problema daquela natureza não suscita uma reacção que leve os agressores a despirem o padre. Quem quer despir o padre é porque tenciona humilhá-lo e expôr a sua parte mais intima perante todos. E comportamentos destes, como explica a ciência forense, têm sempre uma razão passional por trás.

E se a verdade for outra? Nesse caso, o PÚBLICO errou. E perante esse erro, teríamos que assumir as nossas responsabilidades. Mas todos os dados de que dispúnhamos apontavam e continuam a apontar para um crime de origem passional. E tanto eu como o meu irmão escrevemos de boa fé e na convicção de que estávamos a contar a verdade. E o silêncio do padre só nos dá razão.

Sobre o perfil que tráçámos para o P2, julgo que o seu teor é inquestionável. Tentámos fazer um retrato do padre, sublinhando alguns aspectos que na nossa opinião são relevantes, como o facto de ele gostar de carros de alta cilindrada (na noite do crime, seguia num Mercedes desportivo de dois lugares), de ser treinador de futebol e de futsal. E apontámos também contradições (a questão dos carros colide com a moral católica, que apela ao despojamento de bens materiais), como o facto de gostar de bares e discotecas e ter proibido bailes populares durante o dia de festa numa das freguesias onde é pároco.

(...) O padre continua a não querer falar, e como não fala não há vítimas, pelo que a PJ passou o caso para o Ministério Público. Uma vez que havia a suspeita de ter havido um sequestro e sendo este um crime público, é possível que MP venha a constituir o padre como arguido. Mas a tese da PJ, com base na expoeriência adquirida, é a de que o caso vai ser arquivado. Porque no momento em que o padre for constituído arguido, por se recusar a colaborar com a Justiça enquanto testemunha do que aconteceu, ele deixará de estar obrigado a falar. Ou seja: nunca se saberá o que aconteceu. E é exactamente isso o que o padre quer. Ele tem o direito de se remeter ao silêncio, mas, na minha opinião, pela gravidade do que aconteceu e uma vez que a população ficou perturbada, ele tinha obrigação de falar. E, se tivesse sido ameaçado, então ainda mais obrigação tinha. Se o padre se deixa calar por ameaças, que fará o povo? Obviamente que ele não quer falar porque teria que tornar pública uma situação do seu foro íntimo que poderia colocar em risco a sua carreira de padre e o seu nome. Se não é nada disto, então só tinha uma coisa a fazer: contar a verdade e processar o PÚBLICO.

2 comentários:

Pedro Machado disse...

Parabéns ao Público e aos seus jornalistas, que não se deixam intimidar por estas insinuações soezes feitas por políticos que deste modo mostram o seu carácter político, corroborando assim a tese das próprias notícias que tanto os incomodam.

O que mais me entristece é ainda haver tanta gente com mentalidade salazarista que odeia a liberdade e a crítica pública. O Público bem pode dispensar esse tipo de leitores.

Continuem assim.

Jovens de hoje-sempre disse...

Palavras curtas e pequenas;Os jovens nao gostam de ler muito. a politica ja enerva!!!