domingo, 18 de outubro de 2009

Prós e contras de duas notícias

Só deve prevalecer um critério para a publicação da notícia: o interesse que tem para o público do respectivo órgão de informação

A notícia culminou com o autêntico haraquiri político em directo que foi a comunicação do Presidente

O provedor recebeu um convite no passado dia 9, uma sexta-feira, para participar no programa Prós e Contras, da RTP1, segunda-feira seguinte. A emissão – foi-lhe explicado – destinava-se a discutir as relações do jornalismo com a sociedade, a política e o desenvolvimento. Habituado a intervir sobre questões no âmbito da comunicação, o provedor aceitou, mas no dia do programa soube que a intenção (não declarada no convite) era debater a produção das notícias sobre as suspeitas da Presidência da República de que estaria sob vigilância por parte do Governo, as quais alvoroçaram a política nacional nos últimos dois meses. As notícias tiveram origem no PÚBLICO e mereceram uma análise crítica do provedor. Essa crítica motivou uma troca de correspondência interna de que houve fuga para o exterior, com a consequente publicação pelo Diário de Notícias de um email enviado por um para outro jornalista do PÚBLICO onde entre outras coisas se revelava o nome de um membro da Casa Civil de Belém como suposta foste de informação das notícias em causa.

Fiel ao princípio de apenas abordar os casos do PÚBLICO nesta página e no seu blogue, o provedor comunicou previamente à apresentadora do programa, Fátima Campos Ferreira, que não poderia pronunciar-se sobre a atitude do jornal no caso, mas apenas sobre questões genéricas do jornalismo, como aliás lhe fora solicitado. Claro que as televisões – e o serviço público não é excepção – ambicionam sangue, e, após uma primeira parte para disfarçar (que terá sido uma maçada para os telespectadores), entrou-se no que de facto interessava aos promotores do programa: uma luta de galos entre os directores do PÚBLICO, José Manuel Fernandes, e do DN, João Marcelino, acicatada por directores de outros órgãos de informação. Ao longo desta segunda parte – de onde, na opinião do provedor, não saiu dignificado o jornalismo português –, Fátima Campos Ferreira. anunciou que o provedor não queria pronunciar-se sobre o assunto, pelo que não lhe concedeu a palavra. Se o tivesse feito, haveria algumas considerações que o provedor, sem prejuízo do seu compromisso para com os leitores do PÚBLICO, gostaria de enunciar, aproveitando para o fazer agora.

No essencial discutia-se se eram dignas de publicação tanto a notícia do PÚBLICO sobre as suspeitas de Belém como a do DN dando a conhecer a mensagem trocada entre os dois jornalistas da concorrência. Claro que notícia é todo o facto novo, relevante ou não, que alguém decida difundir para um grupo de pessoas, mas a questão que se colocava era se aquelas notícias em particular se enquadravam do estatuto editorial dos respectivos jornais e se haviam obedecido às regras e deontologia jornalísticas.

O provedor não vai reiterar a argumentação já expendida acerca do que considera os erros grosseiros cometidos pelo PÚBLICO no processo. Mas entende ter total justificação a manchete inicial, “Presidência suspeita estar a ser vigiada pelo Governo”, de 18 de Agosto. A notícia estava devidamente fundamentada numa fonte fidedigna da Casa Civil da Presidência da República, identificada no texto como tal, e não era sobre a existência da vigilância governamental (que nunca se comprovou) mas sobre a suspeita nesse sentido formulada por Belém. Perguntava-se no Prós e Contras: essa mera convicção de alguém na Presidência da República, mesmo sendo fonte qualificada (como no caso), era noticiável? Sem dúvida: não se tratava das suspeitas de cidadãos privados mas sim de um estado de espírito indiciador do nível de degradação das relações entre dois órgãos de soberania cuja missão seria cooperar e não alimentar guerrilhas institucionais – e portanto uma informação de inegável interesse nacional.

Basta aliás avaliar as consequências que a notícia (jamais desmentida por Belém) desencadeou, culminando com o autêntico haraquiri político em directo que foi a comunicação autojustificativa do presidente Cavaco Silva (C.S.) em 29 de Setembro, inteiramente dedicada ao tema, para a caucionar.

Quanto à revelação pelo DN, em 18 de Setembro, do email dos jornalistas do PÚBLICO, perguntava-se também na emissão televisiva se era legítima (dado violar correspondência privada), se não deveria ser acompanhada da revelação de como o email chegou ao jornal e se não haveria grave falta deontológica por se identificar a fonte confidencial de um jornalista.

Mais uma vez, segundo o entendimento do provedor, o critério básico que deve prevalecer – atendendo aos princípios editoriais do DN, não muito distintos dos do PÚBLICO – é o do interesse público da notícia. E haveremos de convir que a manchete do DN – alvo de tentativas iniciais de desmentido, mas com uma incoerência que só serviria de comprovativo à sua autenticidade – causou considerável abalo no mundo político, então em plena campanha eleitoral para as legislativas, com reacções de todos os sectores, ajustamentos da agenda e do discurso políticos, eventuais efeitos no resultado das eleições e até a necessidade sentida pelo Presidente de vir a público explicar-se. Como é que não havia ali matéria de notícia? Havia – e muita.

Os jornalistas, em regra produtores de notícias, não podem eximir-se à circunstância de serem também objecto de notícia – foi o caso. Habituados a justificar com a prevalência do interesse público a violação, muitas vezes por eles praticada, da correspondência privada de outros cidadãos, não deveriam queixar-se quando, em nome desse mesmo princípio, são alvo de idêntica devassa. É a vida.
Por certo, a forma como o email foi parar ao DN seria uma história interessante, mas não faria sentido o jornal fazer depender da sua publicação a notícia acerca do conteúdo desse email, pois estaria a sonegar uma história muito mais interessante do ponto de vista do seu relevo público. Se a fonte exigiu o sigilo, o DN limitou-se a cumprir a sua obrigação, pois essa seria a condição sine qua non para que pudesse trazer ao conhecimento dos leitores uma informação de interesse nacional.

Mas, tal como no caso do PÚBLICO, também a notícia do DN foi afectada por vários erros. O provedor já esclareceu aqui que exerce funções no PÚBLICO, não no DN, mas dirá o que diria na RTP intervindo no âmbito exterior a essas funções. Entre esses erros figura a forma acintosa e inexacta dada à manchete: “Assessor do Presidente encomendou caso das escutas”. Parte considerável das notícias que todos os dias o público recebe devem-se à iniciativa de fontes de informação junto dos media, mas isso não significa que essas notícias sejam “encomendas”, já que passam pela prévia mediação dos jornalistas, que avaliam o seu interesse. Assim sucedeu com a notícia original do PÚBLICO. Considerá-la encomendada por Belém é o mesmo que dizer que muitas das notícias publicadas pelo DN não passam de encomendas dos seus informadores.

Outro problema consistiu na denúncia da fonte do PÚBLICO. Os jornalistas do DN fizeram-no com plena consciência da ilegitimidade, dado saberem (como atrás vimos) que o sigilo profissional enforma a sua actividade, tal como sucede com os médicos, os advogados ou os padres. Poder-se-á argumentar que a preservação do sigilo competiria ao próprio jornalista que contactou a fonte, o qual, quando escreveu o seu nome no email, já estaria a violar a confidencialidade. Mas, por imperativo ético, deveria haver um mínimo de decência profissional de outros jornalistas para manter essa salvaguarda: não vemos médicos a revelarem a ficha clínica de pacientes de outros médicos, advogados a denunciarem segredos dos constituintes de outros advogados ou padres a divulgarem as confissões recolhidas por outros padres.

E se a nova doutrina produzida no centenário matutino advoga o contrário, será que também se aplica a quem trabalha na mesma redacção ou no mesmo grupo empresarial? Poderão, por exemplo, os jornalistas da TSF denunciar as fontes dos do DN e vice-versa? Onde está a fronteira? Parece que se instala antes a lei da selva no jornalismo, que acabará por sair prejudicado, pois as fontes confidenciais perderão a confiança nos jornalistas e deixarão de lhes transmitir informação.

Nada disto altera porém o essencial: as duas notícias tiveram mais prós do que contras – e marcaram o jornalismo português por muitos anos.

CAIXA:

O umbigo dos arquitectos

A Secção Norte da Ordem dos Arquitectos, através da presidente, Teresa Novais, e do vice-presidente, Luís Tavares Pereira, do seu Conselho Directivo Regional, expressou ao provedor “surpresa e indignação” pela forma que a Edição Norte do PÚBLICO de 26 de Setembro, na secção Local, deu à notícia “Arquitecto preso por deixar assaltante cego e em coma”, a qual “coloca despropositadamente o ênfase da mensagem na profissão do autor da agressão, denegrindo o bom nome da profissão arquitecto”. Sustenta a reclamação: “Um crime de agressão e abandono de vítima pelo agressor é noticiado com a identificação em cabeçalho do agressor em função da sua profissão de arquitecto e repetindo-o continuadamente em cada um dos três parágrafos que compõem a notícia. A relevância para a notícia da profissão de arquitecto, não estando este no exercício da profissão, parece-nos um aproveitamento desproporcionado da associação entre uma profissão de prestígio cívico e um acto ignóbil (...), que, ao ser enfatizada desta maneira, constitui um atentado ao bom nome da profissão de arquitecto, atingindo toda a classe desnecessariamente. (...) Está em causa (...) a gratuitidade e prejuízo com que a excessiva ênfase na profissão estende uma fina manta de negatividade sobre toda a classe”. Solicita-se por isso ao PÚBLICO, “em nome de todos os arquitectos, um pedido de desculpas”.

O provedor julga injustificada esta reacção corporativa. O facto de no centro dos acontecimentos se encontrar, de forma um tanto ou quanto inesperada, um arquitecto pode dar interesse acrescido à notícia. E os leitores do PÚBLICO não são tão estúpidos a ponto de pensarem, a partir daqui, que todos os arquitectos são violentos e agridem, com razão ou sem ela, quem se atravesse à sua frente.

Publicada em 18 de Outubro de 2009

DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR:

Carta do Conselho Directivo Regional Norte da Ordem dos Arquitectos

A Ordem dos Arquitectos – Secção Regional Norte (OASRN) vem por este meio manifestar a sua surpresa e indignação pela forma dada à notícia da agressão e abandono da vítima na edição Local Porto de 26 de Setembro 2009 do PÚBLICO, com o título “Arquitecto preso por deixar assaltante cego e em coma”, que coloca despropositadamente o ênfase da mensagem na profissão do autor da agressão, denegrindo o bom nome da profissão arquitecto.

1. Na notícia em epígrafe, um crime de agressão e abandono de vítima pelo agressor é noticiado com a identificação em cabeçalho do agressor em função da sua profissão de arquitecto e repetindo-o continuadamente em cada um dos três parágrafos que compõem a notícia.

2. A relevância para a notícia da profissão de arquitecto, não estando este no exercício da sua profissão, parece-nos um aproveitamento desproporcionado da associação entre uma profissão de prestígio cívico e um acto ignóbil de agressão e abandono de vítima, que, ao ser enfatizada desta maneira, constitui um atentado ao bom nome da profissão de arquitecto, atingido toda a classe desnecessariamente

3. O que está em causa não é, evidentemente, a informação da sua profissão, associada a um processo de reconhecimento do género, idade, residência ou profissão, mas a gratuitidade e prejuízo com que a excessiva ênfase na profissão estende uma fina manta de negatividade sobre toda a classe profissional dos arquitectos, sem qualquer justificação.

4. Por essa razão, a OASRN, em nome de todos os arquitectos, solicita ao PÚBLICO um pedido de desculpas e solicita a publicação desta nota para esclarecimento público.

5. Aproveitamos esta oportunidade para, relativamente a notícias efectivamente referentes à construção ou inauguração de novos edifícios, a referência aos devidos autores subscritores das obras mencionadas seja incluída no texto, em que, para o bem e para o mal, a identificação do arquitecto ou ateliê constitui um facto de relevância e responsabilização dos arquitectos perante a opinião pública.

Teresa Novais, Presidente
Luís Tavares Pereira, Vice-presidente
Conselho Directivo Regional Norte da Ordem dos Arquitectos

1 comentário:

Raimundo Narciso disse...

Só agora descobri o Blog o que facilita muito a reprodução da notícia. "Linkei-o" aqui
http://puxapalavra.blogspot.com/2009/10/havia-ali-materia-de-noticia-havia-e.html.
(Ainda pensei em "liguei-o" para não "atraiçoar a Pátria" mas, convenhamos, na blogosfera "linkei-o" fica mais apelativo.)