quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O mestre e a prima

A “praga preposicional” há muito que me incomoda.

Mas não concordo que essas calinadas se devam ao “uso de preposições, como se não houvesse o cuidado de recorrer à mais adequada, mas sim à que melhor soa aos ouvidos do redactor”.

Parece-me mais um efeito, diria eu, de “contaminação”, uma perversão do princípio da analogia: o escriba toma uma palavra por um sinónimo (ou um quase-sinónimo) mais comum mas menos “erudito” e pespega-lhe com a preposição que devia acompanhar a primeira.

Alguns exemplos pescados em jornais, TV e rádio:

- A palavra "chorar" contamina o menos plebeu "carpir"; e vá de escrever, muito literária e pretenciosamente, “não sei por quem carpia tão dilaceradamente Dona Pomba” (asneira debitada por Catalina Pestana no Sol);

- na página de Economia do PÚBLICO, escreve um douto profissional “discordo completamente com o que disse Axel Weber” (seja quem for o Axel Weber de quem o plumitivo, envenenado pelo antónimo "concordar", discorda);

- no Diário de Notícias, a propósito de “o alfaiate português do Príncipe Carlos” – os assuntos que eles vão desencantar… -, comete o jornalista: “A acreditar pela encomenda (…)”. A asneira é, evidentemente, a confusão com a frase “a julgar por”;

- DN, PÚBLICO, televisões a granel e tutti quanti: "aguardar por", “contaminado” por "esperar por".

Podia continuar ad nauseam nas preposições, mas prefiro acabar com outras pérolas, como “linhas de crédito específicas à habitação” e uma que é pandémica na chamada comunicação social, o arrepiante e erradíssimo se em “alastrar-se”, vítima da falsa semelhança com “espalhar-se” ou a impagável Manuela Moura Guedes no saudoso Jornal Nacional da TVI a esganiçar-se aos gritos: “O bastonário aponta que há advogados (…)".

Pois é; é confundir a obra-prima do Mestre com a prima do mestre-de-obras.

António Dias

NOTA DO PROVEDOR: Os dicionários já admitem "alastrar-se" como canónico.

3 comentários:

Anónimo disse...

A propósito do seu P.S. queria deixar aqui uma nota: os dicionários, ao referenciarem uma dada palavra, construção ou uso, não a estão a tornar "canónica" mas sim a documentar o seu uso. Os melhores incluem pistas para que quem consulta saiba que são erradas ou devem ser evitadas (calão, vulgarismo, etc.) mas outros não o fazem. Em resumo, o tão ouvido nas salas de aula "mas stôra, estava no dicionário" não quer dizer que esteja correcto.

FCP disse...

Quer fazer o favor de explicar o que está mal em "por quem carpia a D. Odete??

Anónimo disse...

A FCP: não se carpe alguém, carpe-se alguma coisa; já não me lembro o que entristecera tanto D.Odete mas suponhamos que alguém tinha morrido. Nesse caso, D. Odete carpiria a morte dessa pessoa e não essa pessoa.
Era o que faziam as carpideiras que, muitas vezes, nem conheciam o falecido e apenas choravam e arrancavam os cabelos a troco de pagamento.
Não tenha dúvida: não é a srª D. Catalina que merece ser carpida, é a asneirola que debitou.

António Dias