Um dos combates que o provedor procurou desenvolver ao longo dos seus dois anos de mandato foi contra a falta de concordância de certos tempos verbais que se seguem à partícula "que", quando esta é sujeito da oração e se refere a um plural retomado da oração anterior. Acontece que no português escrito e falado de hoje existe grande probabilidade de sair asneira: o predicado ser enunciado no singular. Baptizou o provedor este frequente erro como "praga de Catual", a partir de dois versos de Os Lusíadas onde Camões respeita a concordância: "Era este Catual um dos que estavam/ Corruptos pela Maumetana gente" (canto VIII, estrofe 81, negrito do provedor).
O provedor considera o seu esforço nesta matéria em grande parte frustrado, a avaliar por alguns exemplos mais recentes recolhidos da leitura ocasional do PÚBLICO:
“é uma das fotos que mais me impressionou” (P2, 26 de Dezembro, pág. 9);
“lançou um ‘míssil’ daqueles que faz grandes estragos” (P2, 23 Dez., pág. 2);
“um dos deputados que ficou proibido de toda a actividade política“ (13 Dez., pág. 21);
“um dos governos anteriores que assumiu esse compromisso” (8 Dez., pág. 40);
“um dos cancros que mais mata em Portugal” (7 Dez., pág. 8);
“uma das frases que fez história no PSD” (7 Dez., pág. 10);
“Lisboa é uma das cidades que aderiu ao No Berlusconi Day” (5 Dez., pág. 19);
“Genebra é também uma das poucas cidades que tem um minarete” (1 Dez., pág. 18);
“um dos raros intelectuais que assume não apreciar por aí além a obra de Pessoa"; “Beirão foi justamente um dos jurados que deu à Mensagem o prémio” (P2, 1 Dez., pág. 6 - os dois exemplos no mesmo artigo, "Mensagem clonada", onde porém se escreve correctamente: “Um dos que criticaram esta opção de Pessoa foi Casais Monteiro”);
“Uma das peculiariedades que mais contribui para essa perplexidade” (P2, 23 Nov., pág. 10);
“Outro dos momentos que vai ficar para a história da televisão” (P2, 21 Nov., pág. 15);
“Somos uma das sociedades europeias que mais rápida e profundamente se alterou nos últimos anos” (11 Nov., pág. 5);
“Uma nas novidades que mais a impressionou, nestes primeiros dias de parlamento” (16 Out., pág. 8).
Na verdade trata-se de um combate difícil, dada a forma como o vício está entranhado no jornalismo português. Ainda na passada terça-feira, 29 de Dezembro, o provedor ouviu o apresentador das notícias das 13h00 na RTP1 referir-se a “um dos primeiros pontos a ser inundado".
Entretanto, a propósito do tema, o provedor recebeu do leitor João Brandão a seguinte observação:
"Sobre o problema do Catual, em que tem geralmente razão, remeto-o para a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra. Aí, em 'Concordância Verbal', pág 494. e seguintes da minha 5ª edição, vem uma concordância com a posição que tem defendido. Porém, no ponto 3 (pág. 498), admite-se que quando o pronome relativo 'que' vem antecedido de 'um dos ... (+ substantivo), o verbo de que ele é sujeito vai para a 3ª pessoa do plural ou, mais raramente, para a 3ª pessoa do singular'. Apresenta dois exemplos dessa excepção, um deles de Camilo Castelo Branco ['um dos primeiros homens doutos que escrevia em português', adiantando-se ainda outras ocorrências do género, como em Aquilino Ribeiro: 'O bispo de Silves foi um dos que caiu no erro funesto']. Em observação nota: 'O verbo no singular destaca o sujeito do grupo em relação ao qual vem mencionado...'"
O provedor também conhecia esta admissão registada por Celso Cunha e Lindley Cintra (e podia até acrescentar outros exemplos, como Eça de Queirós em Os Maias, capítulo X: "E Carlos, furando, pôde enfim avistar no meio do montão um dos sujeitos que correra no prémio dos Produtos"). Mas considera tratar-se de uma condescendente indulgência de filólogos esmagados perante o peso de celebridades literárias, e não concorda que se admita a razoabilidade de uma excepção que vai contra toda a lógica sintáctica da língua. Rejeita com efeito a ideia de que, porque um escritor consagrado comete um erro idiomático (e tantos existem), esse erro deva ser promovido aos cânones linguísticos. Não é de aceitar, aliás, que, no caso vertente, as duas fórmulas possam estar correctas de acordo com o arbítrio de quem escreve. Porquê "mais raramente" na terceira pessoa do singular, como dizem Cunha e Cintra, que não apresentam para isso qualquer justificação racional (o que é bizarro, temos de concluir)? E como saberá quem escreve em que altura se aplica o "mais raramente"? Deve existir uma regra, e basta decompor analiticamente as frases e verificar quem é o sujeito para se concluir que o tempo verbal terá forçosamente de ser conjugado no plural. Tão simples como isso. É verdade que há vícios de linguagem que tendem a enraizar-se e perpetuar-se, e este é um deles. Também é um facto que certas corruptelas acabam erigidas em regras linguísticas (impostas pelos falantes). Mas não parece ao provedor que possa ser esta a situação. Para que o português não seja uma língua de trapos, deve obedecer a um normativo coerente, defendido pelos seus cultores. É o caso.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
Praga de Catual em balanço
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